Você está lendo aqui a transcrição e tradução de um TEISHO (1), ou seja, de um ensinamento oral que foi dado por Roshi Albert Low, em um retiro no Centro Zen de Montreal no Canadá.
Uma pessoa pergunta : Todos os professores aconselham a prática da meditação. Qual o objetivo da meditação ?
Não uso a palavra meditação da mesma maneira em que é usada de maneira geral. A maioria das pessoas entendem o Zen como um treinamento de meditação.
As pessoas perguntam : Você ensina meditação no centro zen de Montreal? Respondo que sim.
Mas, na verdade, se falarmos de maneira mais precisa, a meditação é um dos aspectos da prática do zen budismo. Concentração e contemplação são os outros dois aspectos. Se você colocar esses 3 aspectos em um triângulo, a contemplação estará no ápice do triângulo e a meditação e a concentração na base do triângulo.
Concentração significa com um centro e significa com energia. Um centro é algo que é energizante. E é algo que perdemos de vista em nossa sociedade. A ausência de um centro nas construções de cidades ou nas habitações é algo que realmente prejudica o bem estar global das pessoas.
A relação que temos com tudo e com todos se torna flácida e periférica. Nada vai a lugar nenhum em nossas cidades modernas. Porém, na história da humanidade, reconhece-se a necessidade dese ter um centro. Na maior parte das sociedades, muita atenção é dada a rituais e cerimônias para o desenvolvimento do poder do centro.
Há um livro muito interessante sobre arte e arquitertura, de autoria de Rudolf Arheim[2], no qual ele aborda o poder do centro. Excelente livro.
Concentração significa com um centro. Em nossa prática, tentamos, entre outras coisas, encorajar as pessoas a sentarem de uma maneira que elas tenham um centro de gravidade baixo. O centro de gravidade se localiza no hara. Não é exagero afirmar que se a pessoa não trabalha a partir do hara, será difícil aprofundar a prática ou desenvolver uma estabilidade na prática. Se a pessoa trabalha a partir desse centro de gravidade natural, haverá então uma concentração natural. Naturalmente a mente da pessoa se tornara focada.
Meditação quer dizer com pensamento. Segundo nossa compreensão, quando uma pessoa medita, isso quer dizer que ela pega um tema ou ideia ou alguma frase de um professor ou mestre e permite que aquela ideia ou pensamento flua ou flutue na mente.
Quando falamos de concentração, falamos de algo altamente energético e centrado. Em contrapartida, a meditação é mais difusa. Ela permite a mente relaxar e se tornar mais fluida e flexível. Quando uma pessoa medita, recomendamos que ela leia um texto por exemplo do livro I AM THAT (Eu Sou Aquele), de Nisargadatta ou um texto de Ramana Maharshi ou qualquer livro que tenha sido escrito ou ditado por uma pessoa desperta, iluminada. Leia apenas algumas frases e permita que a mente trabalhe com isso, permita que a mente descanse, que permaneça nisso. Então, leia um pouco mais e permita a mente de permanecer nas frases.
É uma ótima ideia fazer uma atividade qualquer com as mãos, como crochet e meditar ao mesmo tempo. Obviamente não é o que a gente faz quando está sentado em zazen mas é algo que a gente faz no cotidiano.
Meditação é uma maneira de refrescar a mente. É uma forma importante de se estimular a fé na verdade de que você é além de todas as formas.
Mas, há também a contemplação. Na contemplação, a pessoa se torna UM com a prática. Se sua prática é acompanhar sua respiração, a comptemplação é smplesmente permitir a respiração respirar. Dizemos frequentemente que você deve tornar-se um com seu koan, com sua prática. Isso significa abandonar toda e qualquer ideia de separação. Naturalmente, você é UM com tudo porque tudo é sua própria manifestação : as paredes, as ruas, as nuvens, o céu, o som dos pássaros e o som do trânsito. Tudo isso é manifestação sua, naturalmente você é UM com tudo. Mas nós damos as costas ao fluxo do rio, porque nos establecemos redemoinhos. Quando damos as costas ao rio geramos o sentimento de sermos um eu individual isolado.
Mas é esse sentido de eu-isolado que é o problema principal, o sofrimento. É desse sentidoilusório de eu-isolado que devemos abrir mão.
Devemos permitir que esse sentido de eu se dissipe para que possamos voltar para casa para nosso estado verdadeiro de completude. Vemos que, na verdade, tudo é nossa própria manifestação.
De todas as formas, nos usaremos aqui o termo meditação da maneira com a qual Nisargadatta[3] o usa e em geral realizará que ele se coloca no centro destas diferentes maneiras de falar.
Uma pessoa pergunta : Todos os professores aconselham a prática da meditação. Qual o proposito da meditação ?
Nisargadatta responde : Nós conhecemos o mundo externo das sensações e ações, porém, sabemos muito pouco sobre nosso mundo interno de pensamentos e sentimentos. O primeiro objetivo da meditação é se tornar consciente e íntimo de nossa vida interna. Porém,o mais alto objetivo da meditação é de se chegar à fonte da vida e da consciência.
Conhecemos o mundo externo de sensações e ações. Até mesmo nosso mundo de pensamentos e sentimentos, nós o conhecemos de fora. Quando olhamos para o mundo, nós vemos coisas e ouvimos coisas e somos capturados pelas formas que vemos. Quando vemos o mundo, as coisas no mundo, permitimos que suas formas se transformem em sua própria realidade.
Você vê uma cadeira. Para nós, a cadeira é algo em si próprio. Existe por si mesmo. Da mesma forma, vemos uma mesa, uma casa, uma pessoa. Quando vemos essas várias coisas, as vemos tendo uma existência própria, um ser próprio. Uma das dimensões que nos permite fazer isso é o uso das palavras. Em geral, palavras são etiquetas. A palavra mesa é uma etiqueta que associamos a essa forma que estamos vendo. Mas, na verdade, isso só é verdade depois que nós analisamos nossos processos de pensar e perceber. No início, a linguagem dá existência ao mundo, ou seja, faz o mundo existir.
Os antigos bruxos eram pessoas que criavam o mundo a partir de palavras. É difícil para nós compreendermos isso, pois nos tornamos muito indiferentes às palavras. Nós estamos tão sobrecarregados de palavras que elas perderam o valor de seu significado real e intrinseco.
É difícil para nós hoje apreciarmos as propriedades mágicas das palavras.
Mas os feiticeiros, poetas e contadores de estórias eram aqueles que circulavam cantando as lendas da tribo. Eles tinham um papel central naquele tipo de sociedade.
Nós adoramos inventar e contar estórias : Você não sabe o que me aconteceu quando eu estava a caminho daqui ! Tenho que te contar ! É demais !
E assim vai. Desenhamos para o ouvinte toda uma situação. Fazemos com que a situação sobressaia por um breve momento, damos vida a ela e quando a estória termina, tudo se desvanece e submerge de volta no riacho do ser.
Vemos o mundo assim, como um riacho, um mar, um oceano do ser indiferenciado mas interpenetrante. Nesse oceano do ser, nós damos ênfase a algumas das ondas, damos nomes a elas, as agarramos, as cristalizamos e por aquele momento, aquelas ondas que nós cristalizamos se tornam o mundo. Nós estamos rodeados de coisas e pessoas, mas na verdade nós estamos cercados de ondas cristalizadas, ondas temporariamente fixadas em suspensão.
Isso é tão habitual que nós tomamos isso como certo. Shakespeare fala que nós estamos rodeados de um pálido molde de pensamento. Um molde pálido, como se fosse um molde de plástico, quando você quebra seu braço e ele é condicionado dentro de um molde de plástico suspenso por uma tipóia. Isso é o que Shakespeare quer dizer quando afirma que estamos rodeados por um pálido molde de pensamento.
Nossa vida toda está enterrada sob essa camada superficial e rígida de atividade verbal. Isto acontece sobretudo nas universidades e principalmente na área de humanas. A área de humanas é o departamento de psiquiatria do mundo acadêmico !
Nisargadatta diz : Todos conhecemos o mundo de sensações e ações.
O que conhecemos é esse mundo moldado em plástico. Um mundo congelado. Nós conhecemos nossas emoções, mas quando Nisargadatta diz que sabemos muito pouco sobre nosso mundo interno de pensamentos e sentimentos, há muita gente que discorda e diz : Eu não entendo muito bem minha ansiedade ! Eu nunca consigo me livrar dela !
Mas é esse o problema. A pessoa conhece a ansiedade de modo formal. Conhecemos a ansiedade como algo do qual temos de nos livrar, queremos calar a ansiedade, nos livrar dela, fugir dela e, em síntese, nos dissociarmos dela.
Mas, quando Nisargadatta diz : O primeiro objetivo da meditação é se tornar consciente e íntimo de nossa vida interna.
Não estamos falando do tipo de intimidade que adquirimos através da maioria dos psicólogos. A maior parte dos psicólogos estão preocupados com dar nomes aos bois. Isso equivale a quase ganhar, quase acertar. Se você quer controlar o diabo, dê um nome ao diabo. Se vocês já se interessaram em magia, especialmente a magia da evocação, a magia de Aleister Crowley[4] : ações que não são descritas são ameaçadoras.
Dar nomes às coisas. Lembre-se de que quando Jesus encontrou o menino que estava possuído, a primeira coisa que perguntou foi : Qual é seu nome? E o demônio disse : Nosso nome é legião.
Qual o seu nome? Dê um nome ao diabo. Há épocas em que não se dizia o nome de Deus porque isso seria trazer Deus para o reino das coisas e seres e assim poder controlá-lo.
Então, nós não estamos dizendo que a psicologia está errada. Mas, esse não é o caminho do Zen. Conhecer sua vida interior significa que você conhece sua vida interior em toda sua fluidez, seu movimento, em toda sua capacidade de união e dissipação. Permitir que essa vida interior seja livre.
Tomemos como exemplo a prática de observar a respiração. Insistimos constantemente : você está seguindo sua respiração[5]? A maioria das pessoas está trabalhando na prática da respiração da mesma forma com que tentam viver suas vidas. Você tenta fazer com que algo aconteça através de sua prática da respiração. Você tenta controlá-la. Você tenta produzir um efeito de um certo tipo ou outro, através da prática. Você quer fazer algo. Você quer obter algo :Me dê paz! Me dê algo! Me dê estabilidade! Faça com que eu me sinta concentrado!
Há todo tipo de exigência que as pessoas colocam por cima de sua prática da respiração. Essa atitude perpetua o moldar a vida nesse pálido molde de pensamento. Congelando a vida, tornando-a rígida.
Então, um dos propósitos da meditação – se você trabalha com um koan[6], ou com a respiração ou em shikantaza[7]. – é de se permitir a flexibilidade da mente.
Há um mestre zen que nos incita a práticar de um modo flexível e oco[8]. Na verdade, esse mestre emprega um termo chinês, um termo intraduzível. O tradutor optou então por duas palavras :flexível e oco. Especialmente na prática da respiração, você deve vivenciá-la de modo flexível e oco.
Em outras palavras : não há respiração. Não existe algo chamado respiração. Não faça com que a respiração seja algo. Algumas pessoas imaginam a respiração entrando no nariz e passando pela larinx e em seguida indo para os pulmões. Outras pessoas se focam em observar a barriga subindo e descendo. Outras pessoas se atêm a coisas diferentes. Umas querem imaginar ou visualizar os números enquanto os contam. Fazem de tudo para transformar a prática em algo palpável : classificá-la, fixá-la, torná-la sólida.
Tudo se resume a essa flexibilidade e esse espaço oco de ser nada em si mesmo. Desde sempre todos os seres são Buda[9]. Desde sempre, nada tem existência própria, em si mesmo. Nem mesmo a respiração. Quando a pessoa permite que essa verdade emerja, então naturalmente ela vê que não existe pessoa nenhuma respirando.
Esse maravilhoso haiku fala disso : Não ha ninguém caminhando nesse caminho nesse início de noite de outono.
Quando você está sentado, você está acompanhando sua respiração, na verdade não há ninguém acompanhando a respiração. Não há ninguém. Não é como se não houvesse ninguém. Ao contrário !! Nós agimos no nosso cotidiano como se houvesse alguém agindo!
Toda nossa vida é baseada no COMO SE !
Como se eu fosse algo a parte do mundo. Como se o mundo fosse feito de coisas individuais isoladas. Mas o mundo é uma só pérola brilhante! A unidade do mundo inclui aquele que conhece esse mundo todo. Abrir-se, tornar-se familiar com a verdade da totalidade. Totalidade não significa uma humanidade estúpida. Totalidade significa uma totalidade cintilante, brilhante, viva, vibrante que é a sua própria natureza enquanto mundo. O mundo enquanto sua verdadeira natureza. Sua verdadeira natureza enquanto mundo.
Então, o primeiro objetivo da meditação é de descongelar, dissolver. Você não resolve seu koan, você o dissolve. É uma dissolução. E não é se identificar com ele. Não se trata de compreender. Não se trata de compreensão, nem de juntar pecinhas de um quebra cabeça. Não é esse o trabalho com o koan. Todos os koans te convidam a entrar no lar da totalidade.
Nisargadatta afirma : O propósito final da meditação é o de se alcançar a fonte da vida e da consciência.
O que é essa fonte de vida e consciência? E como podemos alcançá-la?
Obviamente, essa fonte é conhecida como o EU, Deus, Consciência Cósmica, Atman, Brahman, Alá. Todas essas palavras fixaram essa fonte, tornando-a uma coisa.
Uma das coisas terríveis que a religião popular faz é transformar tudo em ídolo. Tudo, cada palavra do Novo Testamento tornou-se um ídolo. Uma forma fixa. Literal. Isso significa aquilo. Isso não pode significar aquilo outro. E eu torturarei você até você morrer se você pensar que isso significa aquilo e não isso.
O que é essa fonte? Ela é intangível[10], inconcebível! Quando as pessoas ouvem isso, elas sentem-se abatidas porque no fundo elas querem segurar, conceber, ter, colocar as coisas em categorias e pendurá-las na parede, nomear as coisas e ter certeza de que eles « possuem » as coisas.
O que é essa fonte? O que é essa fonte de luz, amor e vida? O que é?
Eu sou o caminho, a verdade e a vida[11].
O que é isso?
Eu sou a luz do mundo[12]. O que é isso?
Isso é o que você está perguntando, quando você questiona : QUEM SOU EU? Essa sede. É por isso que dizemos que quando você está praticando com a pergunta QUEM?, pratique junto com a respiração. Cada expiração, permita que seja QUEM. Dentro de cada respiração, permita que ela seja QUEM? Permita que seja QUEM? Respirando. Permita que seja QUEM? expirando. Desta maneira, haverá essa qualidade flexível-oco. Você não tentará se agarrar a nada. Nem pegar nada. Tem de haver o questionamento. Sem o questionamento, não há prática.
O próprio questionamento é sentir saudade, fiar, necessitar, desejar, ter esperança. Ou é esse doar, esse germinar. É essa sensação de frustração, desespero, confusão. É isso. Desespero para doar, para germinar. É simplesmente a vida congelada em conflito consigo própria. Quando é liberada, dissolvida, quando é permitido que a vida seja o que ela é inerentemente : inconcebível, imcompreensível, todos esses conflitos desaparecem por si mesmo. A fonte é revelada. Não algo. Não algo lá longe. Mas, a alegria pura de ser, o puro movimento em si mesmo de cada músculo.
Nisargadatta diz : A prática da meditação afeta profundamente seu caráter.
Veja bem, há a personalidade, que é evanecente. Bolhas. Como refrigerante. Bolhinhas eclodindo na superfície do líquido. Isso é a personalidade. Nunca a mesma, nem mesmo um segundo. Você encontra com um amigo e um tipo de bolha emerge. Você encontra com um inimigo e você é um outro tipo de bolha. Você recebe o formulário de imposto de renda, outro tipo de bolha. Você ganha um dinheiro inesperado e você já se tornou um outro tipo de bolha. A cada momento da vida, uma nova bolha. Uma nova resposta.
Abaixo das bolhas, há ondas enormes, como aquelas causadas por maremoto. Isso é o que em sânscrito é chamado vasanas, ondas da mente. Maneiras habituais de reagir. A maior parte desses modos habituais de reagir são modos pelos quais nós mantemos a sensação de sermos algo ou alguém. Por exemplo, ações físicas habituais que empreendemos. Respostas precisas a momentos difíceis. Maneiras precisas de se fazer coisas. Por isso pedimos às pessoas não se mexerem quando estão fazendo zazen para que elas não possam fazer esses gestos naturais, esses movimentos.
E então, há esses sentimentos, essas emoções. Muitas pessoas estão presas em um estado crônico de raiva. Ou um estado crônico de ansiedade. Um estado crônico de auto-crítica. Um tipo de onda que usamos para nos golpear constatemente para nos assegurarmos que ainda estamos vivos. E há ainda os pensamentos habituais, os enredos que nos desenrolamos em nossas cabeças de novo e de novo e de novo e de novo. Regurgitamos as mesmas memórias. E ainda há as mesmas aspirações, quase sempre irrealistas, ilusórias. Isso é o que chamamos de caráter da pessoa. Claro, estamos olhando o lado negativo. Há o lado positivo : generosidade, paciência, coragem e etc.
É o lado negativo que é o problema porque ele pressupõe um congelamento.. Se você já esteve na beira do mar, você pode ver essas pequenas ondulações da água, um plissado do mar. Quando o mar recua da areia ele deixa a marca desse plissado na areia e a próxima vez que o mar acaricia a areia, ele se deixa imprimir desses mesmos plissados e deixa na areia os mesmos plissados novamente quando ele recua. Os plissados são padrões fixos. A maior parte dos psicólogos trabalham com a personalidade. Com os efeitos do caráter.
Mas quando a pessoa pratica zazen, significa que esses padrões fixos e profundos começam a dissolver. O que a maior parte das pessoas não entende é que a prática da meditação não é uma prática que te leva direto ao paraíso. Meditar não equivale a um bilhete só de ida para o paraíso. Nem entrar no paraíso usando botas. Ao contrário. A maior parte dos mitos falam da viagem que o herói faz no submundo. Invariavelmente durante a aventura do herói ou da heroina, há uma passagem pelo inferno.
Quando começamos a liberar esses gargarejos da mente, quando começamos a liberar essas gárgulas[13] da mente, pode ser bastante perturbador. Causa muita ansiedade nas pessoas, depressão e etc. Por isso é importante ter um professor com quem você possa trabalhar e que ajuda você a negociar com esses momentos mais difíceis da prática.
Essa fase pode ser muito difícil : quando a pessoa está dissolvendo esses aspectos mais profundos da personalidade ou do caráter, por assim dizer, flexibilizando ao mesmo tempo que mudanças profundas estão ocorrendo.
Nisargadatta diz : Nós somos escravos daquilo que não conhecemos. E mestres daquilo que conhecemos. Nós superamos todo vício ou fraqueza que descobrimos e entendemos conhecendo-os. O inconsciente dissolve quando trazido à consciência.
Essa pessoa[14] realmente se recusa a usar a palavra « inconsciente » Nossa sociedade adora a palavra « inconsciente ». Adoramos a ideia do inconsciente. De alguma forma, ele nos dá direito a sermos irresponsáveis : Eu fiz isso inconscientemente.
Há sem dúvida lugar para a palavra inconsciente. Mas não da forma tão abrangente como é usada no momento pela maior parte dos psicólogos e filósofos. Há níveis de consciência, há níveis de despertar e podemos ver isso.
Por um certo ponto de vista, há níveis de consciência. Num outro nível, protestamos que não há nada disso e em um nível superior, concordamos novamente que sim, há distintos níveis de consciência. Tudo é consciência. Não importa o quê você encontre : experiência, sensação, emoção, qualquer coisa que você veja ou sinta, qualquer coisa que você ouça ou toque ultimamente é consciência.
Podemos dizer que há duas consciênias : você é consciente do mundo e você é consciente enquanto mundo. Você é consciente de sua consciência enquanto mundo. Você não tem como sair da consciência. Isso é o que significa quando afirmamos que o mundo todo é mente. Isso não tem nada a ver como Solipcismo porque o próprio sentido de EU SOU ALGO é em si consciência. Tudo é consciência. Em sânscrito é dito : Tudo é Boddhi. Buda. Todos os seres são Buda. Tudo é Buda, tudo é consciência, boddhi, conhecer.
Tudo é conhecer sobre conhecer; conhecer refletido em si próprio. Um pouco como o holograma. Façamos essa comparação sofisticada : um holograma é composto de padrões de interferência projetados em um raio de luz estável. Esses padrões de interferência são então fixados em um suporte, de forma que quando essa luz brilha de novo, esses padrões são refletidos de volta e você têm a impressão de estar vendo um objeto em 3 dimensões. Mas, na verdade é tudo luz. Luz refletida em cima de luz. Luz sobre luz.
O mundo todo é consciência refletida na consciência. Isso significa que quando uma pessoa permite que a consciência predomine ao invés de deixar predominar o conteúdo da consciência… por exemplo, supomos que você está ansioso. As pessoas, de um modo geral, têm somente consciência de que estão ansiosas. Às vezes nem isso. Às vezes elas dizem : Não sei porque, mas me sinto péssimo(a) ! Estou preocupado com tudo o tempo todo !
Em outras palavras, lutamos contra isso tempo todo. Rejeitamos. Eu não sei, eu não quero, eu não gosto, eu não vou. Quanto mais rápido engolimos uma pílula e nos dissociamos do que está acontecendo, melhor. Se você não tem pílula, você bebe álcool. Se você não bebe, você se cola na televisão. Tudo para escapar. Tudo para se dissociar, para tomar uma distância das coisas.
Mas há uma outra maneira : permitir que a consciência predomine ao invés de deixar predominar o conteúdo da consciência. A pessoa está consciente da ansiedade. E então, a pessoa vê que ela está consciente enquanto ansiedade. Ela vê que consciência e ansiedade formam um todo. Elas são uma só coisa do mesmo modo que a madeira da mesa e a forma da mesa são uma só coisa. A madeira e a forma não são o mesmo. A madeira da mesa não é a forma da mesa. A consciência da ansiedade não é a forma da ansiedade.
Se a pessoa se permite simplesmente estar consciente da ansiedade, então a primeira coisa que acontece é que todos os pensamentos que estão conectados à ansiedade começam a se dissipar. Eu digo : eu estou ansioso. Estou ansioso porque tenho uma consulta no médico e estou com dor e ele talvez diga que é câncer. A ansiedade não tem nada a ver com o câncer ou com a visita ao médico. O que há é essa condição primária de ansiedade. Essa condição primordial de insegurança.
Quando Buda diz que a vida é sofrimento, vida é dukkha[15]. Buda se refere à condição primordial de sofrimento que traduzimos em termos de raiva, ansiedade, depressão, etc. Temos vários nomes para essas condições. Mas, é a condição primordial da vida.
Quando digo que estou ansioso porque tenho de fazer isto ou aquilo ou que estou ansioso por causa de uma coisa especifica, na verdade o que tento fazer é cercear essa condição, dar uma forma à ansiedade, tentando transformá-la em algo e torná-la em alguma coisa que pode ser controlada. Ao menos eu sei de que se trata.
Por exemplo, quando você vai ao médico e ele diz : você tem donplibibot. Você pensa : ah, que interessante! E tudo fica bem, porque você tem agora um nome para a coisa. Pouco importa o que aquele nome significa. Sentimos que pelo menos há algo acontecendo ! Mas, quando você permite que a ansiedade seja ansiedade, há um movimento da resistência ao abandono. Permitir ser. E esse permitir ser é a consciência em si mesma. Ela é essencialmente permitir ser.
Por isso dizemos : permita que a respiração respire. Não seja separado da respiração. Não faça a respiração respirar. Torne-se UM com a respiração. Permita a respiração respirar. Permita que a consciência da respiração predonomine….. E é esse permitir que eventualmente dissolve qualquer ansiedade, raiva, depressão que você possa vivenciar. Uma das maravilhas que você pode fazer é parar de dizer : oh, estou muito ansioso. Simplesmente trabalhar com a ansiedade gradualmente. Precisa-se de muita coragem para fazer isso.
A coisa toda se resume a relaxar, a permitir ser. Quando a gente é persistente e se abandona realmente, então atinge um outro nível. Não digo que esse permitir vai acontecer rapidamente, dentro de semanas. Pode ser que leve meses ou anos e eventualmente chega um momento que você admite : Mas… eu não sou isso ! Eu não sou a ansiedade !
Pouco importa o tipo de medo. O pior dos medos. O pior dos medos é algo que está acontecendo. Não sou eu que está acontecendo. Eu não sou isso. Eu não sou o medo!
É como a estória da cobra. Você vê uma cobra. Um pouco mais tarde você vê que não era uma cobra e sim uma corda. E mais tarde você constata que são somente as cinzas da corda depois de ter sido queimada. É tudo que restou. Poeira e cinzas que se deixam varrer pelo vento.
Nisargadatta diz : Nós superamos todo vício ou fraqueza que descobrimos em nós, compreendemos suas causas e seu funcionamento. Nós os superamos através do conhecer. O inconsciente dissolve quando trazido à consciência.
Isso é o que os psicoterapeutas mais profundos são capazes de fazer. Não é uma contradição. Uma vez que os psicoterapeutas são capazes de ir além da necessidade de nomear as coisas e o desejo de se identificar com elas, então a transformação é possível.
Claro, a prática é extremamente difícil sem concentração, sem a meditação, sem a fé que é gerada em nós de que nós não somos uma coisa, que nós estamos além de toda e qualquer forma. Sem isso tudo, esse tipo de prática é extremamente difícil, provavelmente fora do alcance da maior parte das pessoas.
Quando estamos lidando com meditação, concentração e comtemplação, quando estamos trabalhando com zazen, estamos trabalhando com a própria substância da Realidade. Isso não é um joguinho. Trata-se da verdadeira porta de acesso aquilo que há tanto tempo queremos; aquilo pelo qual nutrimos nossas esperanças mais profundas. Permita-se penetrar nisso agora. Trabalhe de tal forma que no final do sesshin você sentirá que por dois dias você foi uma pessoa, uma pessoa verdadeira.
[1] O presente teisho é classificado como 679-1de3-Nov.1999-Nisargadatta pelo Centro Zen de Montréal. Tradução de Débora Bolsanello, revisão de Alexandre Cursino e Yves Chalout.
[2] Arnheim, Rudolf. (1982) The Power of the center. University of California Press. EUA.
[3] Nisargadatta Maharaj nasceu em Bombaim, Índia em 1897. Aos 34 anos, Maruti foi apresentado por um amigo a Sri Siddharameshwar Maharaj, o líder do ramo Inchegeri, da filosofia Navanath Sampradaya. O guru lhe deu um mantra e algumas instruções e morreu pouco tempo depois. Em pouco tempo, Maruti iluminou-se e assumiu o novo nome de Nisargadatta. Tornou-se um homem santo e partiu de pés descalços para o Himalaya, mas, no caminho, encontrou com um outro discípulo de seu guru que lhe mostrou a inutilidade de se viver longe da civilização. Assim, ele voltou a Bombaim. Tendo o suficiente para viver, reassumiu seu pequeno negócio e construiu com suas próprias mãos seu próprio local de meditações onde recebia buscadores de todas as partes do mundo. Nisagardatta tornou-se conhecido internacionalmente através do livro “I AM THAT”, publicado em 1973 no estado North Carolina (EUA) e trata-se de uma coletânea de perguntas e respostas entre ele e as pessoas que vinham visitá-lo em sua casa.
[4] Edward Alexander Crowley, nascido em 1875 e falecido em 1947 na Inglaterra, é conhecido pelo nome de Aleister Crowley. Personagem rebelde e controverso, Aleister Crowley foi jogador de xadrez, alpinista, poeta, pintor, astrologo e adepto de drogas. Publicou livros sobre ocultismo e participou de várias sociedades secretas.
[5] Uma das práticas propostas pelo Zen é estar-se atento às fases de inspiração e expiração.
[6] Koan é uma questão enigmática que o mestre propoe ao discipulo como estimulo à prática. Ha muitos tipos de koan e 2 exemplos deles : QUEM SOU EU e MU?
[7] Shikantaza é uma palavra japonesa que significa `simplesmente sentar-se`. Shikantaza é um dos principios da escola Soto Zen, para a qual a meditação não deve servir à obtençao de beneficios individuais.
[8] É interessante observar que o bambu, um dos simbolos do zen, é flexível e oco (N do T.).
[9] Esta frase é parte da Cançao do Zazen, de Hakuin.
[10] Intangível e não inatingível (N do T).
[11] Palavras de Jesus.
[12] Palavras de Buda.
[13] As gárgulas são figuras monstruosas que, na arquitetura gótica das igrejas da Idade Média, têm a função de desaguadouro, ou seja, a parte saliente das calhas de telhados que se destina a escoar águas pluviais a certa distância da parede. O termo se origina do francês gargouille, originado de gargalo ou garganta, fazendo referência ao barulho do gargarejo. Existe também a versão de que essas figuras monstruosas são guardiões da igreja.
[14] Albert Low refere-se a si mesmo quando ele diz `essa pessoa`.
[15] Dukkha é um termo da língua Pali e em sânscrito, duḥkha. Trata-se de um conceito central do Budismo, traduzido por sofrimento, aflição, tristeza, dor, ansiedade, insatisfaçao, desconfrto, angústia, tensão, aversão, infelicidade. É também um termo árabe significativo : vertigem.