Mercantilização avança e multiplica as crises hídricas. Há alternativa: tratar abastecimento como direito universal e converter as fontes em Bens Comuns Globais. Eis um possível caminho
Tese 1. A água é um elemento natural indispensável e insubstituível para todas as formas de vida, todas as espécies vivas (seres humanos, espécies microbianas, vegetais e animais). A água é a própria vida. Enquanto tal ela deve ser salvaguardada e protegida. A vida tem em si um valor absoluto. Ela vale porque ela é. Isso significa que quando se entra no domínio dos direitos não se deve apenas falar do direito humano à água, mas também do direito da própria água à vida, à sua regeneração, sua integridade, seu bom estado ecológico. Fonte de vida, a água é também, não nos esqueçamos, fonte de doenças, de calamidades e de cada vez mais antróprica.
Tese 2. Nenhuma forma de vida pode manter-se sem água. A vida sobre a Terra começou pela água, no meio aquático e só depois fora dele. No plano humano, o recurso à água não é uma questão de escolha ou de preferência em função de necessidades individuais diversas ou modos de vida coletiva, mas uma necessidade vital a ser satisfeita, na igualdade e responsabilidade. A água não é e nem pode ser considerada uma mercadoria, um “recurso”/coisa que se vende ou se compra, apropriável a título privado (quer seja de natureza privada ou pública ou mista). Todo Estado ou organização política internacional intergovernamental que reconheça ou trate a água (e os serviços hídricos) como uma mercadoria apropriável posiciona-se fora do campo do respeito à água como vida e do Estado de direitos. O direito de propriedade privada e pública existe mas estimamos que, no caso da água para a vida, ninguém, nem mesmo o Estado, pode considerar-se proprietário. É necessário sobretudo falar de responsabilidade e de garantia. A constituição do Chile, herdada do regime ditatorial de Pinochet e ainda em vigor, estipula que a água no Chile é de propriedade privada. Trata-se de fato único no mundo, inaceitável.
Tese 3. Todos os seres humanos e todas as outras espécies vivas têm direito à água na quantidade e qualidade suficientes para a vida. Da mesma forma, para além de qualquer abordagem antropocêntrica e tecnoprodutivista, a água também tem seus direitos à vida, ao seu bom estado ecológico. Daí a importância fundamental de uma política da água a serviço da salvaguarda, do cuidado e da defesa da vida e do direito à vida que vá além das concepções funcionalistas instrumentais da água a serviço da vida e do bem-estar dos seres humanos. Exemplo: o tratamento/descontaminação das águas usadas é essencial no quadro de um manejo sustentável das diferentes fases do ciclo longo da água. Significa não somente para permitir aos outros humanos recaptar a água “boa” regenerada para suas necessidades, mas também permitir a regeneração da água e da vida dos ecossistemas enquanto tais. Assim, é preciso que os investimentos coletivos no tratamento/saneamento da água sejam públicos e, no caso de capitais privados estarem associados, é preciso impedir que as prioridades de investimento nos diferentes setores de tratamento e reciclagem sejam definidos em função dos rendimentos financeiros dos capitais e do princípio “o poluidor paga”. Nesse caso, a tendência “natural”, em obediência ao princípio da rentabilidade, seria favorecer o tratamento e a reciclagem dos usos mais poluentes da água, o que é incompatível com o princípio da vida.
Tese 4. O princípio “o poluidor paga”, imposto e aplicado à água a partir do fim dos anos 1980 deve ser revisto. A experiência demonstra que é ineficaz, inadequado e mistificador. A maioria das poluições e contaminações das águas das últimas décadas fragiliza as estruturas microbianas dos seres vivos, em nível dos indivíduos (inclusive seres humanos), das espécies e dos ecossistemas. Os danos consequentes são em sua maioria irreversíveis, irreparáveis ou demandam longos períodos de tratamento e de custos consideráveis. Nesse caso, impor um pagamento ao poluidor para reparar um dano “existencial” irreparável faz pouco sentido. A opção mais sábia e coerente é simplesmente a proibção de usos poluentes e contaminações irreparáveis.
Tese 5. O direito à água potável e ao saneamento foram reconhecidos pela Assembleia Geral da ONU em 28 de julho de 2010 e consolidados pela resolução do Conselho dos Direitos Humanos da ONU de 15 de setembro de 2010, que ratificou o direito à água no Pacto Internacional relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), cuja justiciabilidade de direitos foi reconhecida alguns meses depois pelas Nações Unidas. O não cumprimento da resolução da ONU constitui uma violação do direito público internacional em vigor. É igualmente necessário denunciar o comportamento dos Estados membros da ONU que votaram contra a resolução (formalmente eles se abstiveram) e que, desde então, tentam regularmente, muitas vezes com sucesso, mencionar o reconhecimento desse direito em todo novo documento da ONU. Propomos que o dia 28 de julho seja declarado pela ONU “o dia do direito à água” em substituição ao dia internacional da água, 22 de março, instituído em 1993 — sob pressão, entre outros, do Banco Mundial. Este havia publicado, em 1993, o documento “Integrated Water Resources Management” (Gestão Integrada dos Recursos Aquáticos), que impôs como “Bíblia” da política mundial da água. Nesse documento, estipula-se que a água é um bem econômico, privado, e que a gestão ótima dos recursos hídricos passa pela gestão privada e pela fixação de um preço pela água, a ser pago pelo consumidor.
Tese 6. Existem diferenças inevitáveis nos dispositivos e modalidades de organização pelas quais as sociedades humanas concretizam o direito à água. Em geral, os Estados signatários das convenções dos direitos do homem têm a tripla obrigação de respeitar, proteger e cumprir o direito à água e ao saneamento. Nesse quadro, o direito humano à água significa concretamente a obrigação por parte dos Estados de criar as condições necessárias e indispensáveis para que cada ser humano possa utilizar 50 litros de água “boa” por dia, segundo as recomendações feitas pela Organização Mundial de Saúde e da Unicef. Ademais, conforme a resolução 70/169 da Assembleia Geral das Nações Unidas reconhecendo, em 17 de dezembro de 2015, o direito ao saneamento como um direito humano fundamental distinto do direito à água, este significa a implantação de um sistema de coleta, transporte, tratamento e eliminação ou reutilização de excrementos humanos, aos quais estão associados os dispositivos de higiene relacionados. Mais de 2,6 bilhões de pessoas não têm acesso a banheiros seguros e dignos de um ser humano.
Tese 7. O direito à água potável e ao saneamento não pode ser objeto de rivalidade e exclusão. Ninguém pode ser excluido pelas “razões” de nacionalidade, de raça, de sexo, de religião, de renda. A maior parte dos Estados atuais estão na ilegalidade em relação a esse direito no plano legislativo, ou pela políticas implementadas ou pelos comportamentos coletivos. O direito à água e ao saneamento deve ser consagrado nas cartas constitucionais de todos os Estados e regulamentado pelas leis estatais ad hoc (federais ou nacionais ou “regionais” ou comunitárias de base, dos povos indígenas…).
Tese 8. Cabe aos Estados, assumir a responsabilidade coletiva – em nome do povo, dos povos – da garantia do direito à água potável e ao saneamento, assegurando a cobertura do conjunto de custos monetários (e não-monetários) ligados à realização adequada do direito, segundo o princípio da gratuidade. No contexto da economia pública dos direitos humanos, a gratuidade não significa ausência de custos a serem cobertos, mas fica a cargo da comunidade através de tributação geral progressiva e redistributiva. É o caso dos custos, também consideráveis, do direito à segurança. As despesas militares estão a cargo do Estado. Predominante desde os anos 80, esse princípio foi gradualmente mas sistematicamente substituído pelo princípio do financiamento da água pelo preço pago pelo consumidor, como qualquer outro bem ou serviço mercantil, industrial, privado. O princípio “a água paga a água”, acoplado ao do “o poluidor paga”, demonstraram suas falhas estruturais e sua inadequação quanto à pretendida gestão eficaz e econômica da água, que eles prometeram e asseguraram. Contribuíram unicamente para assegurar os lucros que importam aos capitais privados, aumentando o nível dos custos para os consumidores e deteriorando as finanças das coletividades territoriais cada vez mais escravizadas à busca contraditória de “lucros pela água” e derrotados em termos de sua autonomia política. Além disso, não impediram o agravamento dos fenômenos de contaminação e poluição da água, bem como seu desperdício e escassez.
Tese 9. O princípio do direito à água “a preços acessíveis” é uma mistificação pois, além da insustentabilidade da tese sobre a obrigação do “consumidor” de pagar o direito à água definido nos termos acima especificados, ele consagra legalmente o fato de que a acessibilidade da água é determinada pelos critérios de rendimento financeiro fixados pelos mercados. Mistificação também no que concerne a “tarifação da água dita social” em favor de pessoas, famílias e categorias definidas como “desfavorecidas”, pobres, incapazes de pagar os custos e, portanto, com risco de cortes de água. Aqui, a mistificação é ainda maior porque significa que nossas sociedades se arrogam o poder de lançar no mercado o acesso à água em bases excepcionais, enquanto forçam as pessoas empobrecidas a pagar um preço, mesmo que simbólico. Em outras palavras, as autoridades públicas atuam na esfera da caridade, da assistência social, embora esta seja uma questão estritamente do campo dos direitos. Não se respeitam direitos fazendo caridade.
Tese 10. A monetização da natureza (nature pricing, nature banking), ou seja, medir em termos monetários os chamados custos e benefícios ambientais de todos os seres vivos (incluindo os ecossistemas aquáticos), explicitamente aprovada durante a resolução final da 3ª Cúpula da Terra no Rio de Janeiro (2012), inscreve-se totalmente na lógica da mercantilização, privatização e financeirização da vida. Deve ser fortemente questionada, porque representa um novo passo adiante, inaceitável, na submissão do destino da água, da vida, às concepções extrativistas, financistas e predatórias da vida. Trata-se aqui de assegurar, também, o futuro da democracia e da justiça.
Tese 11. O direito humano universal à água para a vida deve ser garantido e assegurado segundo uma concepção dos direitos pluridimensionais. Ele se traduz por um sistema de regulação em quatro níveis:
– O nível do direito de até 50 litros por pessoa, por dia
Neste nível, os custos envolvidos são atribuídos à coletividade por meio da tributação. Para isso, é preciso abolir os paraísos fiscais, acabar com as reduções e incentivos fiscais para as empresas privadas que atuam no mercado de ações, remunicipalizar os sistemas de poupança e bancos de crédito locais, colocar na ilegalidade os derivativos…
– O nível do bem-estar coletivo fundamentado, entre outros, na segurança hídrica das comunidades humanas e do consumo entre 50 e 120 litros por dia, por pessoa
Nesse nível, as autoridades públicas são autorizadas a demandar de todos os cidadãos a contribuição financeira dos custos de salvaguarda da água pelo pagamento de uma taxa anual fixa (a taxa de responsabilidade hídrica).
– O nível de bem-estar individual, entre 120 e 250 litros por dia, por pessoa
Nesse nível, tratando-se de uma quantidade de água individual importante, cujo impacto sobre o ambiente e o modo de vida deve ser rigorosamente controlado, os cidadãos devem contribuir com o financiamento com uma taxa progressiva cujo objetivo será, entre outros, aumentar a conscientização sobre a necessidade de um estilo de vida sóbrio, respeitando os imperativos ambientais e da vida em coletividade.
– O nível (além dos 250 litros por dia, por pessoa) do uso insustentável para o bom estado dos corpos hídricos e o bom funcionamento das bacias hídricas
Nesse nível, é preciso abandonar o princípio “o poluidor paga” e adotar o princípio da interdição. Mesmo quando se paga, não podemos prejudicar a integridade da água e sua regeneração (ver tese 4).
Tese 12. Em conformidade com as concepções e às práticas consolidadas no decorrer do tempo em todas as sociedades, propõe-se respeitar a seguinte hierarquia quanto aos usos da água:
1. Usos domésticos (água potável, higiene, alimentação, saúde…)
2. Usos na agricultura: essencialmente irrigação e criação de animais…
3. Atividades industriais, inclusive produção de energia
4. Atividades terciárias, especialmente turismo.
Tese 13. No caso de “estresse hídrico” – segundo a definição da ONU, trata-se da situação de uma comunidade humana dispondo de menos de 1000 m³ por ano por pessoa para todos os usos – não se pode estimar que a solução virá essencialmente do recurso às soluções tecnológicas visando o aumento da oferta de água, tais como a melhora da produtividade hídrica na agricultura, a redução de perdas e desperdícios de rede, a dessalinização da água do mar, a produção de água por meio da captura em grande escala da umidade, o transporte de água por longas distâncias (no mesmo modelo de petróleo e gás). Nem a solução deverá vir das técnicas de gestão capitalistas, como a gestão da demanda de água pelo preço ao consumidor, os bancos de água, os mercados de água. A cocacolização da água, usada para refrigerantes e águas minerais engarrafadas, demonstrou largamente sua inconsistência e seus riscos.
Tese 14. A mesma proposta vale no caso de “penúria de água” (definida como a situação de uma comunidade humana que disponha menos de 500 m³ por ano por pessoa para todos os usos). A monetização e a bancarização não passam de instrumentos inventados pelos grupos sociais fortes do sistema econômico e político dominante, que lhes permite dispor e ter acesso à água rara/escassa de modo a satisfazer unicamente suas necessidades vitais, seu bem-estar e seus interesses de poder.
Tese 15. As soluções devem vir essencialmente de uma mudança radical na maneira de “pensar a água”, segundo as linhas examinadas e propostas neste trabalho, em particular segundo os três princípios gerais mencionados:
– a água para a vida deve ser reconhecida e tratada como um bem comum público mundial
– a disponibilidade e o acesso/uso da água devem ser considerados e realizados concretamente como um direito universal para todos os habitantes da terra, todas as espécies vivas
– a água enquanto tal também tem direitos.
Tese 16. Todos os usos da água, segundo as prioridades acima, devem respeitar os princípios da sustentabilidade da vida (regeneração…), da responsabilidade coletiva e individual/comunitária, da justiça social e da igualdade em relação aos direitos, da democracia participativa efetiva, da sobriedade, da precaução.
Tese 17. A água de irrigação para produtos agrícolas de exportação e os hábitos alimentares esbanjadores e devastadores dos consumidores das classes sociais abastadas não podem ser uma prioridade, como ocorre hoje. Da mesma forma, a água usada para produzir vegetais destinados à produção de combustível para os transportes rodoviários não pode figurar entre os usos prioritários. É urgente reconstruir uma bio-agricultura que valorize localmente, de maneira sustentável, o capital de terra e de água para as necessidades vitais das populações locais no quadro de um sistema de cooperação, troca e partilha sem rivalidade e competição.
Tese 18. O mesmo princípio deve ser aplicado à construção das grandes barragens para a produção de água para a irrigação segundo os moldes de uso não sustentáveis atuais, ou para a produção de eletricidade para as indústrias de mineração, agroalimentar e química, ou atividades militares. É inaceitável que centenas de milhões de pessoas, na África, América Latina e Ásia não tenham acesso à eletricidade, pois suas terras e águas estão entre as principais fontes de produção de eletricidade do mundo, para alimentar as indústrias mencionadas.
Tese 19. Apoiados no princípio da soberania, os Estados atuais são incapazes de reconhecer que as águas situadas sobre seu território devem ser salvaguardadas e valorizadas no que diz respeito à vida global sobre a Terra e aos direitos de todos seus habitantes. Isso se traduz hoje na impossibilidade de conceber, ou de realizar, uma política mundial cooperativa e solidária de água.
Tese 20. Face à crescente escassez de boa água, o conceito de segurança hídrica pensado e defendido pelos Estados é o da segurança nacional. O mesmo quanto à segurança alimentar, energética, econômica. É urgente e indispensável eliminar os obstáculos profundos construídos por tal visão de segurança, em favor da concepção e promoção da segurança coletiva mundial. Com esse objetivo, a proposta é criar um Conselho da Segurança dos Bens Comuns Públicos Mundiais, a partir da água, das sementes e do conhecimento.
Tese 21. Em vista da globalização desigual e predadora atual, a abordagem multilateral e interestatal aplicada à política da água tornou-se inadequada e inapropriada — ainda mais porque o poder político efetivo não está mais concentrado nos Estados, nas instituições políticas públicas. Após as sucessivas concessões feitas pelos Estados em todos os terrenos, o poder político real passou às mãos de grandes organizações privadas, empreendimentos multinacionais mundiais e mercados financeiros globais. Exemplo emblemático entre todos: o Forum Mundial da Água, organização privada dominada pelo mundo do business e das finanças, substituiu a ONU — com o acordo e a cumplicidade dos Estados — como a principal ágora do mundo para debates e propostas sobre questões relativas aos problemas, desafios e prioridades da água em escala mundial. É necessário que a ONU recupere seu papel de sujeito público “mundial” e que seja profundamente mudado o Pacto Global nesse domínio assinado em 2000 entre a ONU e as corporações multinacionais privadas.
Tese 22. É urgente construir um sistema planetário plural, participativo, em rede, para regulação política mundial da água, no quadro de uma regulação mais ampla que cubra a terra e as sementes, e o conhecimento (veja tese 20). Este sistema pode denominar-se Ágora Planetária, Conselho de Segurança Mundial ou o que seja. Sua missão, a definir de maneira clara e precisa, será tripla: legislativa, programática, judiciária. Essas competências e meios serão gradualmente colocados em prática com base na avaliação das experiências realizadas. É assim que o sistema poderá contribuir com o crescimento de uma regulação do futuro da vida em nome da humanidade e do conjunto da comunidade geral da vida na Terra, em alternativa à regulação atual imposta em nome do dinheiro e dos interesses de grupos sociais e de oligarquias dos Estados mais poderosos.
Tese 23. As experiências em andamento em matéria de governo cooperativo das águas transnacionais e interregionais – principalmente as dezenas de organizações de bacias hidrográficas pelo mundo – são de grande utilidade para definir as configurações possíveis das instituições de regulação mencionadas. Elas destacam o fato de que, para tornar-se aceitáveis e estáveis, as configurações deverão respeitar os princípios da vida em sua integridade e globalidade, o papel da autonomia complementar que liga as múltiplas entidades membros do sistema, cuja liberdade será real de acordo com sua cooperação com os outros, a primazia da segurança coletiva comum e, consequentemente, o privilégio da memória nacional, a justiça social, a não mercantilização da água e a não privatização do governo das diferentes fases do longo ciclo da água.
Tese 24. Um papel capital na pesquisa e na construção de uma regulação política, econômica e social da água deve ser desempenhado pelas cidades, particularmente as grandes cidades da África, América Latina e Ásia. Em 2050, segundo pesquisa publicada na Nature Sustainability (fevereiro de 2018), os habitantes de aproximadamente 300 a 482 cidades mais populosas do mundo não terão acesso à água potável e aos serviços higiênico-sanitários de base. Trata-se de um cenário absurdo. Nossas sociedades não podem deixar de reagir com força. É seu dever improcrastinável a produção de um programa de ação de envergadura planetária que possa chamar-se a Água urbana 2020, pois a proposição será lançada em 2020 por uma ágora de cidades, por ocasião do décimo aniversário do reconhecimento do direito universal à água pela ONU.
Tese 25. Nesse contexto, e fazendo referência à água potável, é indispensável opor-se à tendência que se afirma até hoje e que consiste na substituição, para beber, da água de torneira pela água mineral natural e de fonte em garrafa. Uma publicidade agressiva e enganosa conseguiu fazer as pessoas acreditarem que a água engarrafada é melhor para a saúde do que a água de torneira, o que é completamente falso. Na realidade, só a água de torneira é potável por definição — no sentido de que é tratada segundo os critérios de potabilidade definidos pelas autoridades públicas. Ao contrário, as águas minerais naturais em garrafa não são tratadas para tornar-se conformes aos critérios de potabilidade, pois sua estrutura bio-química é permanente, portanto não precisam ser engarrafadas ao sair da fonte. Elas podem ser bebidas, mas se usadas regularmente no lugar da água da torneira, isso deve ser feito ser sob supervisão médica. Depois de sua injustificável privatização – pelas concessões de exploração de longo prazo, remuneradas por uma taxa anual irrisória, seu uso comercial atingiu níveis muito altos, excedendo, em alguns países, o percentual de uso de água da torneira. Custam de 200 a 1000 vezes mais do que a água da torneira. Resultado: a água potável é usada nas casas e nos lugares públicos cada vez mais para funções não nobres (o vaso sanitário, os chuveiros, as máquinas de lavar, a lavagem de carros…). Uma situação inaceitável, devida unicamente a uma estratégia de altos lucros permitida pelos poderes públicos, em detrimento das coletividades locais. Os sinais de inversão de tendência parecem se manifestar. É tempo de republicizar e remunicipalizar as águas minerais naturais e de fonte e dar novamente prioridade ao uso da água potável nas casas e nos lugares públicos com o uso da água local.
Tese 26. Não se pode concluir sem mencionar a questão da água virtual, a saber a água necessária para produzir um bem ou um serviço que podemos substituir — seja comprando localmente ou tendo acesso aos bens e serviços de outros. Essa noção deu vida a reflexões importantes na questão de avaliação na escolha de prioridades a estabelecer entre produção direta ou compra/importação de bens e serviços em função da política de água (conservação, proteção da qualidade da água, objetivos ambientais, regimes de propriedade, participação dos cidadãos, cooperação entre os povos…). É lamentável que os aspectos comerciais e financeiros tenham dominado até agora os debates sobre a água virtual. Cabe aos poderes legislativos locais e regionais legislar sobre essa área e também enfatizar a importância de outros aspectos.
Tese 27. A água, como a terra, as sementes, as plantas, os animais, os seres humanos são parte da grande comunidade da vida na Terra. A essa comunidade corresponde um universo múltiplo e complexo de funções, direitos, responsabilidades em todos os níveis espaciais de organização da vida. Numa perspectiva humana, os princípios unificadores permitem a esse universo “viver bem” sem rupturas “existenciais” frequentes e sem conflitos destrutivos, uma vez que seu funcionamento é inspirado e guiado pelos princípios de complementariedade, cooperação, segurança comum, compartilhamento, solidariedade, tolerância, não violência, liberdade comum.
Isso significa que não podemos deixar o futuro do mundo e da vida sobre a Terra sob os princípios de rivalidade e de exclusão, de dominação e de predação, de escassez e apropriação autocrática, próprias do sistema econômico dominante hoje e principalmente de suas lógicas financeiras e mercantis. É preciso libertar a água e o direito à vida das finanças atuais e de seu controle mortal.
Fonte:
Outras Palavras (https://outraspalavras.net/destaques/agua-as-27-teses-subversivas/)