Meditar pelas razões adequadas é um ponto vital no tocante à meditação ser um instrumento de transformação profunda ou apenas uma maquiagem para estados superficiais e enganosos para si e para os outros. — Ricardo Sasaki, em “Porque não começar a meditar“
Meditação é o novo preto, como se diz, quando se quer referir a uma nova moda estabelecida. Mas junto da divulgação e expansão dessa inestimável prática de auto-conhecimento, estão vindo junto confusão, superficialidade e banalização. Mesmo entre pessoas com algum nível de dedicação, do meio do Yoga e da saúde, há uma empacotação padronizada da meditação como uma espécie de massagem rejuvenescedora para a mente. Por conta disso, já há algum tempo começaram a aparecer alertas de professores e mestres buscando esclarecer o que a meditação é, para que deve se praticar e quais os fundamentos genuínos dessa prática. Entre os alertas, não só a superficialidade da prática em si que é ressaltada, mas a possibilidade do agravamento do narcisismo, de se “ser alguém melhor” e de se mascarar, assim, uma série de neuroses, estilos de vida desequilibrados e rotinas doentes.
No final do ano passado li um artigo de Ricardo Sasaki, diretor da Comunidade Buddhista Nalanda do Brasil, intitulado “Porque não começar a meditar“, que traz importantes e salutares esclarecimentos à atual (e enorme) onda de cursos de meditação, mindfulness e variantes. Na essência do artigo está uma lembrança sobre a profundidade necessáriaà prática e informações sobre as intenções e expectativas ligadas a ela — geralmente de calma, prazer, felicidade e melhoria geral do estado da pessoa que pratica.
“Vários motivos levam as pessoas a começar a meditar, e nem sempre elas são os mais apropriadas. Um desses motivos é o de, por meio da meditação, obter experiências agradáveis. Isso está ligado à ideia generalizada de que o objetivo da vida é desfrutar de felicidade e de prazer”, ressalta Sasaki. Outro instrutor brasileiro de meditação, Sérgio Veleda, fundador do Vale do Ser, que promove retiros de meditação Vipassana no Rio Grande do Sul, alerta para transformação da meditação em uma “nova aspirina“, se referindo ao uso e à expectativa que muitas pessoas que associam a prática a um tipo solucionador de estresse, de ansiedade, de nervosismo e toda espécie de “dor-de-cabeça”.
Essas recentes visões críticas não se restringem ao território nacional. Em julho passado, o autor americano phD em Psicologia Clínica Thomas Jointer lançou um livro intitulado “Mindlessness“, que poderíamos traduzir aproximadamente como o contrário de Mindfulness, ou por “Desatenção” ou “Falta de Consciência“. O subtítulo do livro é “The Corruption of Mindfulness in a Culture of Narcissism“, ou A Corrupção de Mindfulness em uma Cultura de Narcisismo. Ainda que preserve e elogie as origens e a técnica de meditação que virou Mindfulness no Ocidente, que chama de “mindfulness autêntico”, ele faz críticas severas e alerta para a possibilidade de muitas pessoas estarem apenas desenvolvendo uma preocupação narcisista crônica, sofisticada, “espiritual”. Jointer classifica essa versão da prática de impostora: “A verdadeira mindfulness está sendo usurpada por uma impostora, e a impostora é barulhenta e tão prepotente que substituiu a original no entendimento geral do que é mindfulness, ao menos para um monte de pessoas que a praticam”.
Num artigo há alguns anos, no jornal The Guardian, o psicoterapeuta e escritor Mark Venon escreveu que “o Budismo é o novo ópio do povo“. Com alguma acidez, no artigo Venon argumenta que a ciência oriental budista e a meditação “servem perfeitamente ao moderno consumismo” (poderíamos ajustar essa afirmação para dizer que “a ciência budista pode ser manipulada de tal maneira a servir aos interesses do moderno consumismo”). O argumento é que, enquanto as práticas forem usadas como aliviadoras dos sintomas do consumismo e do modo-de-viver materialista, será de fato apenas um complemento, um “regulador hormonal” do próprio consumismo e materialismo. Como uma estátua de Buda no canto da sala, que ao invés de ser o símbolo da prática, é apenas um ornamento de aparência “espiritualizada”. O problema não seria das práticas em si, ou do Budismo, obviamente, e sim da maneira com que se aproximada disso tudo, e do modo como se pratica.
“Está é a escolha: transformação genuína ou uma estátua brilhante do Buda no canto da sala”.
— Mark Venon, em “Buddhism is the new opium of the people“
Recentemente, esbarrei com um site de moda recomendando livros de mindfulness. Numa das recomendações, dizia que era “um livro gracinha, rápido e tipo pocket que cabe na bolsa”. No Facebook, vi o anúncio de vagas para um workshop de mindfulness que dizia, em sua última linha, “corra que ainda dá tempo”. A meditação está aí empacotada para consumo, servindo aos propósitos do sistema neurótico, perpetuando-o com o perfume da última tendência. Talvez haja boa intenção em ambos os casos, mas ainda assim propagaram a prática com o viés superficial.
Tenho ouvido eu mesmo, diversas vezes em eventos ou comentários na Internet, a citação da prática da meditação como se fosse uma espécie de “massagem” ou de pomada de alívio do estresse cotidiano. Essas referências variam: “Preciso chegar em casa e meditar, porque hoje o dia foi tenso“, ou “preciso começar a meditar de manhã cedo, senão não vou aguentar essas semanas que virão“, ou “agora que comecei a meditar não me incomodo mais tanto com Fulano ou Sicrano“. Ainda que sejam experimentadas sensações de paz e clareza, nestes casos específicos a meditação está sendo vista como algo que alivia mas mantém a estrutura estressada, desequilibrada e iludida da pessoa que pratica. Exatamente como um remédio de dor-de-cabeça, usada com o fim de aliviar o sintoma, e não a causa da doença.
Esse é o caminho do materialismo espiritual, um termo muito bem explicado pelo grande mestre budista Chögyam Trungpa Rinpoche — veja este post “A “fraude gigantesca” que é o ego e como distorce a espiritualidade e até a meditação, por Chögyam Trungpa”.
John Kabat-Zinn, o médico americano que é hoje um dos maiores divulgadores de mindfulness nos Estados Unidos, reconhece que hoje é necessário mais do que apenas a prática sozinha, que é preciso seriedade e profundidade. “Se isso é apenas mais uma moda, não quero ter nada a ver com isso“, ele diz, numa matéria publicado no jornal inglês The Guardian, em outubro de 2017. E justifica porque divulga tanto a técnica: “Se nos últimos 50 anos eu tivesse encontrado algo mais significativo, mais curador, mais transformador e com mais potencial social, eu estaria fazendo isso”.
Na mesma matéria, a psicóloga Catherine Wikholm diz que não há uma “pílula Buda“, e que há uma divulgação equivocada da meditação. Muitas vezes, ela alerta, ao invés de calma e estresse reduzido, pode haver justamente o contrário, pois ao sentarmos em silêncio e sem mais nenhuma atividade disponível, o que geralmente reprimimos com toneladas de atividades aparece a pleno vapor. Além disso, ela ressalta um ponto fundamental:
Para a mente secular, a meditação preenche um vácuo espiritual; traz a esperança de nos tornarmos pessoas melhores, indivíduos mais felizes num mundo mais pacífico. Entretanto, o fato de que a meditação foi projetada originalmente não para nos tornar mais felizes, mas para destruir nosso sentido de eu individual — quem sentimos e achamos que somos na maior parte do tempo — é geralmente ignorada nas matérias da ciência e da mídia sobre ela, que focam quase exclusivamente nos benefícios que os praticantes podem esperar da prática”.
— Caterine Wikholm, em “Seven Common Myths About Meditation“
Voltamos ao ponto de Sasaki aqui, onde ele diz que podemos fazer da prática uma “transformação profunda ou apenas uma maquiagem para estados superficiais e enganosos para si e para os outros”. Uma maquiagem para estados superficiais e enganosos. Se essa for a alternativa, e se é isso que boa parte da mídia e dos praticantes estão
Bhikkhu Bodhi, um monge budista Theravada e importante tradutor das obras centrais do Budismo, aborda as opções de motivação e abrangência da prática pela possibilidade dela ser feita no contexto espiritual em que foi criada ou de maneira “secular”, como muitos vem propondo. Segundo ele, a meditação pode ser praticada fora do contexto da escola e da sabedoria em que foi ensinada, mas que isso obviamente vai limitá-la.
Quando praticada no âmbito do entendimento naturalístico, a meditação do insight pode trazer uma calma maior, compreensão e equanimidade, até mesmo pode se experimentar insight. Ela pode purificar a mente de degenerações mais grosseiras e pode gerar uma aceitação tranquila dos problemas da vida. Por essas razões, esse modo de prática não deveria ser depreciado. Entretanto, de um ponto de vista mais profundo, essa apropriação da meditação budista permanece incompleta. Ela ainda está confinada à esfera da existência condicionada, ainda atada ao ciclo de karma e de seus frutos.
— Bhikkhu Bodhi, em “Two Styles of Insight Meditation“
Como seria, então, a prática mais integral, mais “apropriada” — dentro do contexto dos ensinamentos budistas, por exemplo? Sasaki diz que ela deve estar dentro de uma dimensão de “estudo, reflexão ética e sabedoria“. Os ensinamentos do Buda contemplam oito passos, chamados de Caminho Óctuplo, onde apenas um deles é atribuído à meditação: Compreensão Correta, Pensamento Correto, Fala Correta, Ação Correta, Meio de Vida Correto, Esforço Correto, Atenção Correta e Concentração Correta. Esses oito passos podem ser agrupados em três temas, que poderíamos traduzir rusticamente por: Sabedoria (panna), Ética (sila) e Meditação(samadhi). Uma meditação budista, então, deveria estar sendo ensinada e praticada dentro desse âmbito maior, que abre a prática para seus reais objetivos, ao lado da Sabedoria e da Ética. Se praticada dentro desses preceitos, Bhikkhu Bodhi diz que então “ela se torna a chave para abrir as portas da imortalidade, o meio para ganhar a liberdade que jamais poderá ser perdida“.
Numa tentativa por outra via, o monge budista Theravada Ajahm Brahm lançou recentemente um livro chamado “Kindfulness” , um trocadilho com mindfulness inserindo a palavra “kind” (gentil, amoroso, bondoso) no início, no lugar de “mind” (mente). A intenção é trazer para a prática algo mais amplo e tão importante quanto mindfulness, colocando ênfase no relaxamento, na tranquilidade e na amorosidade da prática. Indiretamente ele está enfatizando também a parte da Sabedoria e da Ética que são parte do mesmo caminho.
No seu nível mais profundo, de onde ela mesmo surge e é ensinada, a meditação não é remédio, alívio ou complemento: é onde o âmago da prática existencial e espiritual acontece. É onde o treinamento mais revolucionário da mente é realizado e revelado. É a prática em que se transforma toda visão, se vê toda ilusão e se experimenta aquilo que transcende o praticante e sua mente. É literalmente a hora da verdade. “Há um motivo para se chamar a meditação de ‘treinamento’. Nem todos os seus momentos serão de prazer ou conforto”, diz Sasaki. “O curso do processo meditativo poderá ser de eventuais enfrentamentos com fantasmas, vícios, apegos arraigados, aversões, pensamentos obsessivos. (…) Ao longo do treinamento será percebido que felicidade genuína é bem diferente de experiências agradáveis, e que é possível ser feliz mesmo em meio a dores e desconfortos”.
“Um bom motivo para começar a meditar é quando se percebeu que deve haver alguma coisa a mais na vida além daquilo que todos em geral estão fazendo. Esse é um motivo que começa a ser válido, pois se baseia em uma intuição de que há algo a mais na vida. Algo mais profundo do que o lugar comum por onde as pessoas transitam, fisicamente e no pensamento, em suas vidas cotidianas.”
— Ricardo Sasaki, em “Porque não começar a meditar“
Sem essa motivação profunda, orientada para a verdade e sem concessões a prazeres ou idéias preconcebidas sobre bem estar e espiritualidade, a prática não se sustenta. Ficará para sempre com água nas canelas. Talvez até seja uma boa academia para a mente, mas nos deixará para sempre do lado de fora da vida, perambulando no samsara.
O Yoga originalmente é uma ciência para o nirvana, o moksha, a libertaçao de perambular repetitivo nos mundos iludidos da mente. Em seu objetivo último, o Yoga busca a liberação do ser dessas ilusões, a auto-realização, a iluminação. Não é “só” uma prática de meditação, mas compreende um caminho de várias dimensões, como os Yamas e Nyamas, que são preceitos éticos, como o Pranayama, Ásanas, a concentração (“Dharana”), entre outros. De acordo com a ciência dos Yoga Sutras de Patanjali, temos “dhyana” como a meditação, mas há outras sete dimensões que precisam ser igualmente observadas e praticadas. Sem esses outros sete passos, a meditação de acordo com Patanjali não pode ser realmente realizada, nem samadhi (o oitavo braço, a “absorção”) ser verdadeiramente experimentado. O meditar da ciência yogue exige uma dedicação não só de tempo de treinamento e disciplina, mas também (ou principalmente) dedicação do âmago do ser em sua busca. Sem aspirinização.
O grande mestre budista Ajahn Chah costumava perguntar às pessoas que começavam a praticar com ele no seu mosteiro o seguinte: “Você veio aqui pra morrer?“. À primeira vista parecia uma provocação estranha, mas era extremamente profunda e direta, pois questionava a motivação da prática e até onde o praticante estava preparado para ir. A meditação sempre fez parte do caminho espiritual, dos ensinamentos dirigidos às inquietações existenciais e espirituais, e sempre ocupou um lugar-chave nas principais escolas de sabedoria onde surgiu e/ou foi desenvolvida, como no seu berço, o Yoga. Sem inquietações, sem frustração séria com a (própria) vida, sem alguma profunda e crítica confusão interior, sem uma busca pela Verdade, as chances de se atingir profundidade genuína com a meditação são muito pequenas. Provavelmente a prática será uma forma de “aprimorar” a vida de quem pratica, sem maiores libertações nem aprofundamentos. Pensar-se-á a meditação como algo que “me ajudou”, mas que fundamentalmente me manteve no cansaço e ilusão do samsara.
O Buda dizia que só trilhamos o caminho da prática espiritual quando estamos com a exaustão do samsara, que poderia ser traduzido como “não aguento mais minha vida”.
— Alcio Braz, em “O Grande Silêncio”
O Buda ele mesmo, em seu momento mais crítico, sentou embaixo de uma árvore em meditação e se propôs nada menos que o seguinte: “Mesmo que o sangue se esgote, mesmo que a carne se decomponha, mesmo que os ossos caiam em pedaços, não arredarei os pés daqui, até que encontre o caminho da iluminação“.
Original em http://dharmalog.com/2018/06/05/porque-nao-comecar-a-meditacao-aspirina/