Mas e agora José? Todas as vezes que estava escrevendo, ficava um pouco angustiado com a situação atual do país, onde os interesses que permeiam a realidade política e econômica acabam sufocando um debate mais aprofundado sobre a produção e o consumo de água. Leio reportagens, assisto a entrevistas, ouço depoimentos e comentários e não me convenço de que os caminhos apontados levarão ao destino desejado: boa oferta de água no tempo e no espaço. Tomara que seja só implicância minha (ou pessimismo, mesmo) e que tudo se resolva dentro de uma lógica que eu não estou conseguindo perceber.
Antes de passar, a partir dos próximos artigos, a discutir outros pacientes internados na UTI ambiental, vou fazer, a seguir, algumas reflexões a mais sobre a realidade nua e crua que recai sobre a produção de água.
1) Há um grande receio, e até um melindre mesmo, de considerar a água um bem de valor econômico. Ainda vivemos a ilusão de ser ela um bem estritamente produzido por sistemas naturais e de acesso livre. Mas, mesmo chateados, temos que aceitar que ela já virou e vai continuar sendo um negócio, cada vez mais regulada pela lei da oferta e procura. Em parte, tal mudança se deve à urbanização da sociedade brasileira (85% da população nas cidades), obrigando a coleta, condução a grandes distâncias, tratamento e distribuição. Antes, quando a população rural predominava, a bica correndo continuamente era capaz de satisfazer as necessidades das pessoas. Os pequenos núcleos urbanos se contentavam com os chafarizes. Muitos, ainda hoje, sonham em voltar aos velhos tempos, mas na lei da oferta e procura, quando o preço sobe a procura tende a cair. A água vai ficar cara para obrigar a diminuição do consumo.
Apesar desta minha opinião, quero deixar claro o meu maior respeito por aqueles que continuam vendo a água como um bem comum e o acesso a ela como um direito humano. Mas, infelizmente, eu falo é da realidade nua e crua;
2) Os sistemas naturais já não conseguem mais equilibrar os processos do ciclo hidrológico e a distribuição de água na superfície e nos aquíferos subterrâneos estão mudando rapidamente. Se insistirmos na tese de que a solução está centrada na recomposição dos sistemas naturais, não vamos conseguir recuperar a produção de água. O crescimento populacional e o consequente aumento do consumo de produtos agropecuários já desenham um novo quadro. E este não tem mais volta. Esbarrado nos meus 73 anos, eu também tenho saudades dos tempos antigos, mas a realidade por mim aceita, controla as reminiscências da infância e da juventude, obrigando-me, como técnico, a buscar alternativas. É o que ando tentando fazer com meus artigos;
3) Recentemente, um jornal mineiro fez uma boa reportagem sobre alguns dos nossos rios, como o São Francisco, o Doce e alguns de seus afluentes. Mas cometeu algumas falhas conceituais que acabam dificultando as soluções. Por exemplo, focaram as nascentes dos vários rios, reclamaram da falta de vegetação arbórea em torno delas e deixaram o leitor com a sensação de que se forem criados parques ou reservas nessas nascentes, os rios estarão salvos. A nascente de origem do são Francisco (e de outros rios) é apenas simbólica, em termos de vazão, e serve como referência para delimitação territorial da bacia. Já a vazão do rio é resultado de milhares de outras nascentes, ao longo de sua área de abrangência, e mantidas por aquíferos abastecidos por pequenas bacias, ocupadas, em sua maioria, por propriedades rurais que já provocaram alterações definitivas nos sistemas naturais. Além do mais, os pequenos cursos d’água formados pelas nascentes têm suas vazões engordadas por equilíbrios diretos com os aquíferos. Se tudo tiver que virar parque ou reserva, como produzir alimentos?
Temos de aceitar as tecnologias de recarga artificial de aquíferos, compatíveis com explorações sustentadas, planejadas e suportadas, pelo menos em parte, pela figura do pagamento por serviços ambientais. Na região Sudeste, onde se concentram os mananciais que abastecem 56% da população brasileira, nós temos aproximadamente 900.000 propriedades rurais com áreas de até 100 hectares que, na maioria, são consideradas pequenas propriedades. Nelas estão concentrados os aquíferos e as nascentes e são essas propriedades que merecem ser remuneradas para se tornarem produtoras de água. Olha aí a água como negócio e a cidade pagando ao campo pela sua produção, assim como paga na feira pelo tomate, pelas verduras, frutas e por outros bens de consumo originados da roça;
4) Mas o pagamento por serviços ambientais não pode ter as ações concentradas apenas em reflorestamentos de matas ciliares e na preservação de outras unidades naturais. Só isso não resolve. As áreas utilizadas para culturas de várias naturezas também precisam colaborar no abastecimento de aquíferos. Aí entram os terraços, as caixas ou cisternas de infiltração, as barraginhas, os plantios em nível, os plantios diretos, os renques de vegetação, as paliçadas e muitas outras tecnologias disponíveis e que podem ser adotadas na produção de planos de manejo.
A Agência Nacional de Águas (ANA) já tem um programa de Produtor de Água, muito interessante (que pode ser consultado em produtordeagua.ana.gov.br) e que tem a finalidade de apoiar ações que levem ao pagamento por serviços ambientais. Segundo a mesma Agência, já existem, no país, 1.098 agricultores beneficiados com pagamentos pelas atividades de produção de água.
O programa, para mim, é como uma folha de chá capaz de aliviar aquela angústia manifestada logo no início deste texto. Mas é fundamental que a semente, já germinada, cresça e produza milhares de outras. Alvíssaras, por enquanto!
5) O pagamento pelos serviços ambientais, ligados à produção de água, exige a participação ativa da comunidade da bacia nas decisões e no acompanhamento das tecnologias de conservação a serem utilizadas. Por isso, chamei a atenção no artigo anterior (UTI ambiental: revitalização de bacias hidrográficas II) da necessidade de o plano de bacia estar ao alcance dos produtores rurais e dos técnicos de campo.
Temos visto, na adoção do sistema de licitações por alguns Comitês de Bacias, empresas de engenharia serem contratadas para construção de terraços, paliçadas, caixas e barraginhas e para cercamento de nascentes. A educação ambiental fica restrita a palestras e cursos rápidos Depois entra em cena uma empresa fiscalizadora. Terminados os trabalhos, elas vão embora e o projeto corre um grande risco de não cumprir adequadamente os objetivos desejados. O trabalho precisa do envolvimento de instituições que militam no campo e na região; que conheçam um pouco, pelo menos, da sociologia rural e das técnicas de extensão rural aplicáveis às comunidades. E que estão lá o tempo todo. Aqui não funciona como na construção de uma obra de arte, por exemplo, onde, terminado o trabalho, submete-se o mesmo à fiscalização para ver se tudo foi feito de acordo com o projetado, desmonta-se o canteiro de obra e pronto. Conservação é uma operação de construção e manutenção ao longo do tempo.
6) Pressionados pela realidade nua e crua, estamos vendo, atualmente, as instituições e as autoridades responsáveis pela oferta de água às populações e pela geração de energia, suplicando pelas chuvas; e, pasmem, torcendo para que elas causem enxurradas que venham logo para encher as represas do Sistema Cantareira, o lago de Furnas e outros.
Mas as chuvas desejadas (pois muitas são odiadas), quando caem, não encontram as bacias hidrográficas em condições de processarem adequadamente os volumes recebidos. Prepará-las é o desafio para a regularização da produção e da disponibilidade de água, de um ano para outro e dentro de cada ano. E é importante sabermos que cheia e escassez de água são irmãs gêmeas, pois se ocorre muita enxurrada para provocar cheia, o aquífero subterrâneo recebe pouca água e provoca quedas das vazões de estiagens.
Termino a série de artigos sobre água com uma expressão muito usada por meu falecido sogro. Quando percebia que o papo estava minguando, ele cuidava logo de encerrá-lo, dizendo: “e a razão é essa”.
Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas, professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e autor de dois livros sobre o assunto: “Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas”e “Das chuvas às torneiras – A água nossa de cada dia”; colaborador e articulista do EcoDebate.
Original em http://www.ecodebate.com.br/2014/04/30/uti-ambiental-a-agua-e-a-realidade-nua-e-crua-artigo-de-osvaldo-ferreira-valente/
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