Recentemente chegaram à minha casa dois gatos que
passaram por uma situação peculiar. Após 4 anos vivendo em uma casa com total
acesso a todos os espaços e convivendo ativamente com as pessoas com quem moravam
foram, por motivos que não vêm ao caso aqui, confinados a um espaço único da
casa, no caso, o quintal. O espaço era limitado e infinitamente menor do que o
que eles estavam vivendo até então. O contato com as pessoas da casa passou a
ser quase que somente nos momentos de troca de água, ração e limpeza da areia
higiênica.
O que chamou minha atenção foi o seguinte: esses
dois gatos estavam muito assustados e com muito medo justamente do que? Do
excesso de espaço. O quintal aqui é bem amplo e eles simplesmente, ao chegarem,
não tinham coragem de avançar no espaço inteiro. Limitavam-se a um pequeno
espaço, que consideravam seguro, e agiam como se tivesse um campo de força
invisível que os impedisse de avançar mais. Quando arriscavam-se, voltavam
correndo para aquele espacinho que delimitaram como seguro.
Isso me fez refletir muito sobre isso: se gatos
que viveram mais tempo com uma maior liberdade, tendo acesso a um mundo bem
maior (antes, o mundo para eles era a casa inteira), ao serem confinados durante
meses, acostumam-se com esse espaço menor e limitado, passando, então, a
desconfiar de tudo que está fora desse espaço delimitado – ainda que esse
espaço seja ruim e não apropriado para eles -, imagine só gatos que nascem e
são criados já em um pequeno cativeiro?
Ora, isso se parece muito com a zona de conforto –
ou de desconforto – em que nos instalamos tantas e tantas vezes e da qual temos
tanto receio de sair. Muitas vezes, agimos como gatos assustados que, mesmo
tendo um mundo muito mais amplo e interessante à sua disposição, não têm
coragem de sair daquele pequeno espaço delimitado que os deixa seguros, mesmo
que esse seja muitas vezes ruim e insuficiente.
Isso me lembrou do texto de Étienne de La Boétie,
chamado Discurso da Servidão Voluntária. Esse texto, publicado por volta de
1570 e escrito quando ele tinha apenas 18 anos de idade, discute justamente essa
questão: por que as pessoas obedecem a determinadas regras se não tem, muitas
vezes, nada nem ninguém que as faça obedecer de forma forçosa? Ele diz que mais
do que tentar entender o que um tirano precisa ter e fazer para poder exercer
poder sobre as massas vale tentar entender por que as massas obedecem sem
resistir.
É como se, inicialmente, fosse necessário fechar a
porta impedindo a entrada dos gatos na casa, mas, depois de um tempo, não
precisasse mais da barreira física. Cria-se um cativeiro psicológico, de forma que
os gatos não saem mais de seu espaço mesmo que nada os impeça de fato. Eles se
acostumam com os impedimentos e barreiras e passam a temer deixar aquela
situação.
Tenho a impressão de que o mesmo acontece conosco.
Parte desse processo já começa na educação: desde muito pequenos já somos colocados
em salas de aula, somos obrigados a ficar sentados e a seguir diversas regras
que, com o passar do tempo, interiorizamos como verdades inabaláveis. E quando
enxergamos possibilidades de novos e infinitos mundos que poderíamos explorar,
nós simplesmente paralisamos, como se houvesse o tal campo de força invisível.
Não damos um passo a mais, mesmo que não haja nada nem ninguém nos impedindo.
“A liberdade é a única coisa que os homens não
desejam; e isso por nenhuma outra razão (julgo eu) senão a de que lhes basta
desejá-la para a possuírem; como se recusassem conquistá-la por ela ser tão simples
de obter” (Étienne de La Boétie).
Criamos um roteiro de vida a ser seguido, criamos
conceitos sobre nós mesmos, criamos crenças e pré-conceitos, criamos até mundos
paralelos e virtuais, como o Facebook, por exemplo, onde não precisamos nem
mais sair do lugar. O cativeiro está mais do que perfeito, porque não há
ninguém obrigando ninguém a ficar com a cara grudada na tela do celular tendo o
mundo inteiro ao seu redor, mas ficamos!
E, incrivelmente, acreditamos que esse é o mundo. Há
um tempo, reduzi drasticamente meu uso do Facebook, passando a usar apenas
profissionalmente e entrando muito esporadicamente com o intuito de “interagir”
com os amigos. E é impressionante a quantidade de tempo que sobra no dia, tempo
em que você levanta a cabeça do seu cativeiro psicológico e descobre que existe
um quintal enorme à sua frente, esperando para ser explorado. E esse quintal pode
ser seu quintal mesmo, literalmente, mas pode ser um livro, pessoas de carne e
osso, pode ser uma música que você escuta prestando atenção, um hobby, um
cachorro alegre na sua frente. E você sai desse espacinho e começa a explorar o
quintal e descobre que não assusta tanto, mais. E você não quer mais voltar
para aquele espaço limitado. Você volta a se acostumar com o mundo amplo à sua volta.
O mesmo ocorre quando você descobre que, apesar de
ter se formado em uma faculdade, existe um mundo inteiro de outras coisas
legais para aprender, estudar. Que o diploma de médica veterinária não me
impede de estudar filosofia. Que o casamento às vezes não é vitalício e que a
solteirice também não é. Que existem infinitos roteiros de vida que podem lhe
satisfazer, assim como roteiros de viagens.
“Assim é: os homens nascem sob o jugo, são criados
na servidão, sem olharem para lá dela, limitam-se a viver tal como nasceram,
nunca pensam ter outro direito nem outro bem senão o que encontraram ao nascer,
aceitam como natural o estado que acharam à nascença. Mas o costume, que sobre
nós exerce um poder considerável, tem uma grande força de nos ensinar a servir
e (tal como de Mitrídates se diz que aos poucos foi se habituando a beber
veneno) a engolir tudo até que deixamos de sentir o amargor do veneno da
servidão” (Étienne de La Boétie).
Então, você descobre, inclusive, que pode, se
desejar, voltar para seu espacinho anterior quando quiser, passar um tempo lá,
usar seu Facebook de vez em quando, mas já não teme mais afastar-se e explorar
novos mundos. Vai ficando mais corajoso, vai gostando desse mundo que se abre e
ficando cada vez mais resistente ao cabresto psicológico. Vai voltando a ser
aquele gato explorador, livre, que às vezes se assusta, às vezes faz umas
traquinagens, às vezes não gosta do que encontra em suas explorações, mas que
não se deixa limitar mais.
fonte:https://www.pensarcontemporaneo.com/1612-2/
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