sábado, 28 de setembro de 2013

RESPIRANDO, CONTANDO, SENTANDO, CONCENTRANDO. TRANSCENDENDO AS TÉCNICAS DE MEDITAÇÃO – POR DIANA ST RUTH

Muitas pessoas têm pedido recomendações de técnicas ou escolas para começar a Meditar e/ou conhecer melhor o Yoga ou o Budismo (e outros caminhos), e as respostas que acabo dando tomam sempre um mesmo caminho: depende de você, de onde você está e do que naturalmente lhe atrai mais. Buscar uma técnica de meditação ou se aproximar de uma filosofia ou prática é uma tarefa profundamente particular. 


Mas nada complicado, pois há cada vez mais práticas e escolas sendo expandidas e ensinadas, incluindo as mais ancestrais e preciosas que já passaram por esse planeta (e no fundo há uma diferença de forma, mas uma semelhança de essência). 

E é mais ou menos isso que trata a jornalista Diana St Ruth, editora do site Buddhism Now, no trecho do livro “Understanding Karma and Rebirth” (Buddhist Publishing Group, 2008) que segue mais abaixo com tradução de Fabíola Queiroz (que gentilmente permitiu sua reprodução aqui) e intitulado Transcendendo as Técnicas (do inglês Transcending Techniques). 


 Somos surpreendidos por formas diferentes de ver as coisas em épocas diferentes e é por isso que os ensinamentos budistas são tão diversificados, diz Diana, no início do texto.

Não só budistas, como de várias outras tradições e técnicas — como as meditações do Yoga, as meditações taoístas, a Meditação Transcendental, a meditações sufis, etc. Dentro do Hinduísmo há uma miríade de caminhos e vertentes tão ou mais ampla. Especificamente dentro do Budismo, diz Diana Ruth, “a consciência é a chave para o entendimento de todo o ensinamento de Buda, é a base de todas as técnicas”. Por onde você entra ou por onde você passa é a riqueza do próprio caminho.  
No atual cenário de explosão de informação e migração de conhecimentos, com um pouco de discernimento, mente aberta e dedicação não há dificuldade nenhuma de encontrar logo algo precioso pra você. 

E o mais importante, como diz Diana no texto, não é ficar analisando e testando vários caminhos, é mergulhar logo em algo que lhe faça sentido e lhe ajude no desafio do auto-conhecimento.


“Há apenas dois equívocos que se pode cometer ao longo do caminho para a verdade: não ir até o fim, e não começar”.
~ fonte desconhecida (atribuída a Buda e a Confúcio, mas não confirmada)


TRANSCENDENDO AS TÉCNICAS” - Por Diana St Ruth 

Somos surpreendidos por formas diferentes de ver as coisas em épocas diferentes e é por isso que os ensinamentos budistas são tão diversificados. Não significa que precisamos aprender todos os métodos, estudar todos os textos de todas as escolas, familiarizarmo-nos com a história do budismo através dos tempos e aprender todas as línguas nas quais os textos foram escritos antes de atingirmos a verdade.

A verdade não está encerrada dentro de uma palavra ou de uma definição ou mesmo em uma longa série de palavras. A verdade é a mesma do princípio ao fim; diz respeito a cada um de nós; diz respeito ao que nós somos e ao que está além dos conceitos e da mente pensante.

Definições são apenas mecanismos ou dispositivos ou meios habilidosos para se atingir o despertar, mas não são a realidade em si; são apenas pistas: vamos ver isso dessa forma, vamos olhar para aquilo daquele jeito… Eles são mecanismos que nos ajudam a abrir nossos próprios olhos. É apenas até aí que as palavras e os ensinamentos de qualquer pessoa podem nos levar. 

Trevor Legget costumava dizer que tentar apontar para a verdade é mais ou menos como contar uma piada:

Algumas vezes, uma pessoa entende a piada: é o suficiente. Mas se alguém não a entende, ou se é uma piada inapropriada, ou se a pessoa não tem senso de humor, então não adianta insistir – ‘você tem que entender!’ – ou discutir a respeito. Conte a piada para outra pessoa.

O mesmo acontece com todas as definições, métodos e técnicas que ouvimos no Budismo. Se uma pessoa não entende, não tem sentido em insistir; melhor tentar outra coisa. Em algum momento ao longo do tempo talvez consigamos entender – como uma boa piada.

Não tem sentido mergulhar nas montanhas de textos e tentar cada técnica de meditação que existe. Uma vez que encontremos algo que funciona para nós, devemos usar esse algo; devemos ir até o fundo, chegar até o caminho, na trilha e correta e aí permanecer; não há necessidade de voltar ao início para aprender uma nova técnica.

Além do mais, Consciência é a chave para o entendimento de todo o ensinamento de Buda; é a base de todas as técnicas e, ainda assim, não é uma técnica em si. Não há nada mais simples ou mais óbvio do que consciência, mas até que vejamos de fato o que realmente é e percebermos sua importância, talvez precisemos de várias técnicas para nos ajudar a chegar lá, como aprimorando nossa concentração através da contagem da respiração, ou dando nome a cada ação que praticamos (em silêncio, para nós mesmos), através do dia – 


‘caminhando’, ‘sentando’, ‘deitando’, espirrando’, ‘comendo’, ‘vestindo-se’ e por aí vai – até que um dia, de repente, nós ‘caímos’, damo-nos conta do que é a consciência, o que é ser UNO com o momento presente, sua realidade e seu poder. “Nesse momento, as técnicas foram transcendidas.”

Original em: http://dharmalog.com/2013/08/08/respirando-contando-sentando-concentrando-transcendendo-as-tecnicas-de-meditacao-por-diana-ruth/

terça-feira, 17 de setembro de 2013

As Três Jóias: Buda, Darma e Sanga - Por Thich Nhat Hanh

Tomo refúgio em Buda, que me mostra o caminho nesta vida.
Tomo refúgio no Darma, o caminho da compreensão e do amor.
Tomo refúgio na Sanga, a comunidade consciente e harmônica.



Na tradição budista, toda vez que você se compromete a estudar, praticar e observar os Cinco Treinamentos da Consciência Plena, você também se refugia nas Três Jóias. Praticar os Cinco Treinamentos da Consciência Plena significa ter fé no caminho da consciência plena, da compreensão e compaixão, pois estes treinamentos são compostos destes três elementos. As Três Jóias também se constituem dos mesmos elementos. Consciência plena, compreensão e compaixão são valores universais que transcendem os limites culturais. Em toda tradição espiritual existe algo equivalente aos Cinco Treinamentos da Consciência Plena e às Três Jóias...


Quando estávamos no ventre de nossa mãe, nós nos sentíamos seguros – protegidos do calor, do frio, da fome e outras adversidades. Embora ainda não fôssemos conscientes da forma como somos agora, nós sabíamos de algum modo que aquele era um lugar seguro. No momento em que nascemos e entramos em contato com adversidades, começamos a chorar, e desde então estivemos ansiando pela segurança do ventre de nossa mãe.

Nós vivemos em um mundo que é impermanente e repleto de sofrimento, e nos sentimos inseguros. Desejamos permanência, mas tudo está mudando. Desejamos uma identidade absoluta, mas não há entidades permanentes, nem mesmo àquela que chamamos de nosso “eu”. Buscar refúgio significa, em primeiro lugar, buscar um lugar que esteja fora de perigo, que seja permanentemente seguro, que possamos confiar por muito tempo. Queremos um lugar como o Céu, onde a figura estável e forte do Deus Pai nos protegerá, e não teremos que nos preocupar com coisa alguma. Mas o Céu está no futuro.


Na literatura asiática, alguns poetas expressaram a crença de que eles viviam num lugar feliz e fora de perigo antes de terem sido exilados na Terra, e quando morressem,  eles seriam capazes de retornar àquele estado de bem aventurança e de felicidade. Outros asiáticos acreditavam que eles foram deuses em suas vidas passadas, mas devido aos erros cometidos, foram exilados na Terra.  Eles acreditavam que, se desempenhassem ações meritórias nesta vida, seriam capazes de retornar àquele lugar seguro. O desejo de tomar refúgio e de retornar a um local que seja seguro e fora de perigo é universal. Em vietnamita, as palavras para “tomar refúgio” são literalmente “voltar e confiar”.
  


Mas como podemos nos sentir seguros agora? As coisas são impermanentes. Se uma semente de milho não fosse impermanente nunca se transformaria numa espiga. Se sua filha não fosse impermanente, nunca se transformaria numa linda moça. Se as ditaduras não fossem impermanentes, não haveria esperança de serem substituídas. Precisamos de impermanência e deveríamos ficar felizes e dizer: “Que a impermanência tenha vida longa, para que a vida seja possível!” No entanto, nas profundezas do nosso ser, nós ansiamos pela permanência.

No budismo existem dois tipos de práticas: a devocional e a transformadora. Praticar devoção é confiar primeiramente no poder de outro ente, que pode ser um Buda ou Deus. Na prática transformadora você confia mais em você mesmo e no caminho que está seguindo. Ser um devoto do Darma é diferente de praticar o Darma. Quando você diz: “Tomo refúgio no Darma”, você pode estar demonstrando a sua fé no Darma, mas isto não é a mesma coisa que praticar o Darma. Dizer: “Eu quero me tornar um médico” é uma expressão da sua determinação de praticar medicina. Mas para se tornar um médico, você tem que passar sete ou oito anos estudando e praticando medicina. Quando você diz: “Tomo refúgio em Buda, no Darma e na Sanga”, isto pode ser apenas a sua intenção de praticar. Não é porque você fez esta afirmação que você já está praticando. Você entra no caminho da transformação quando você começa a praticar àquilo que você pronuncia.
Mas pronunciar palavras tem um efeito sim. Quando você diz: “estou determinado a estudar medicina”, isto já tem um impacto na sua vida, mesmo antes de você se dirigir a uma escola de medicina. Você quer fazer aquilo e por causa da sua determinação e desejo, você encontrará um jeito de ir à escola. Quando você diz: “Tomo refúgio no Darma”, você está expressando confiança no Darma. Você vê o Darma como algo benéfico, e quer se orientar naquela direção. Isto é devoção. Quando você estuda e aplica o Darma na sua vida diária, isto é uma prática transformadora. Em toda religião existe a distinção entre práticas devocionais e transformadoras.


 Muitos budistas recitam os Três Refúgios como uma prática devocional. Precisamos ter fé e confiança para praticar. No Budismo, fé e confiança estão interligadas e às vezes significam a mesma coisa. Mas a fé cega não é encorajada. Nós temos de compreender, contatar, experimentar e verificar as coisas antes de realmente acreditarmos nelas. Buda, Darma e Sanga são coisas que podemos entrar em contato. Não são assuntos de especulação. Buda foi um ser humano que viveu na História. Nós conhecemos a vida e ensinamentos dele. Podemos usar o nosso tempo, energia e inteligência para entrar em contato com Buda. Confiança e fé verdadeiras surgem do estar em contato, e não apenas do fato de alguém dizer algo que se espera que acreditemos.


Podemos alcançar diretamente o Darma. O Darma existe de forma escrita, na tradição e na prática das pessoas. Onde as pessoas estão praticando o Darma, podemos ver os frutos das práticas delas. O Darma é algo concreto que nós podemos estar em contato, experimentar verificar, e isso faz surgir confiança e fé reais.


A Sanga é a comunidade que pratica o Darma. Uma boa Sanga expressa o Darma. Quando vemos uma Sanga praticante que revela algum grau de paz, calma e felicidade e transformação, fé e confiança surgem dentro de nós. Imagine que sou alguém que, por muito tempo, nunca acreditou em coisa alguma, e nunca teve paz alguma. Mas, de repente, vejo uma comunidade de pessoas que através da prática se transformaram até certo ponto. Agora tenho fé e confiança e isto me traz um pouco de paz. Devoção no budismo não é aceitar uma teoria sem tocar a realidade.


Em países budistas, muitas pessoas laicas recitam: “Tomo refúgio em Buda, tomo refúgio no Darma, tomo refúgio na Sanga”, mas elas se confiam nos monges e monjas para praticarem por elas. Elas apóiam a Sanga de praticantes ofertando comida, abrigo e outras coisas que ajudam a Sanga a ter sucesso na prática do Darma. 



Elas sentem que a prática de uma pessoa que vive realmente feliz traz felicidade a muita gente. Isto é prática devocional. 

Para estas pessoas, pronunciar as palavras “Tomo refúgio em Buda, tomo refúgio no Darma, tomo refúgio na Sanga” já é suficiente para elas terem paz e alegria. Mas na América do Norte e Europa, as pessoas laicas querem praticar a transformação. A comunidade de meditação vipassana no Ocidente, por exemplo, é formada por pessoas que praticam, (e não apenas confiando em monges e monjas), e por muitos professores laicos.



Quando o praticante laico Anathapindika estava prestes a morrer, o Venerável Sariputra, sabendo o quanto Anathapindika amava Buda e tinha fé no Darma e na Sanga, convidou-o a meditar nas Três Jóias. Anathapindika sentiu grande alívio e foi então convidado por Sariputra para meditar em outros assuntos geralmente reservados aos monges e monjas. Essas experiências aguaram as sementes de paz e alegria em Anathapindika.


Alguns meses antes de morrer, Buda ensinou aos discípulos dele a tomar refúgio em si mesmo. “Bhikkhus, sejam uma ilha dentro de si. Não tomem refúgio em nada mais. Tomem refúgio no Darma. Usem o Darma como suas lâmpadas. Usem o Darma como suas ilhas”. Ele se preparou muito bem para a morte.


Buda disse: “O meu corpo físico não estará aqui, mas o meu corpo dármico (Dharmakaya) estará com vocês para sempre. Se quiserem tomar refúgio no meu corpo dármico, vocês podem fazer isso a qualquer momento”. Posteriormente, na história do Budismo, o corpo do Darma se tornou a natureza ou o espírito de Buda, isto é, o verdadeiro Buda que está disponível através dos tempos. Se soubermos tocar o Darmakaya, ele estará disponível a nós, aos nossos filhos e netos a qualquer momento. Compreender claramente que o corpo físico não é tão importante quanto o corpo dármico foi um conforto para os discípulos de Buda. Hoje em dia, há tanto sofrimento e perigo dentro de nossa sociedade; é como uma forte corrente tentando nos puxar para dentro do oceano de aflição. Para nos proteger, também podemos praticar sendo ilhas dentro de nós.


Sanghakaya é uma palavra nova. Cada Buda e cada praticante têm o seu próprio corpo de Sanga. Um ou uma Buda só pode ser um ou uma Buda quando o Darma está dentro dele ou dela. Sem o Darma, alguém não pode ser chamado de Buda. Buda e Darma são dois, porém um. Buda não existe sem o Darma. O Darma não pode existir sem um Buda. Uma Sanga é uma comunidade que pratica o Darma. Se não houver Sanga, quem praticaria o Darma? O Darma não será palpável se não houver praticantes. Se você quiser que o Darma seja praticado, você precisa da Sanga. A Sanga, portanto, contém Buda e Darma. Buda, Darma e Sanga interexistem. Eles poderiam ser chamados da Trindade Budista: triratna (ou ratna traya), as Três Jóias. Na triratna, cada jóia contém as outras duas. Quando você toma refúgio em uma, você toma refúgio em todas as três. Quando você confia e tem fé na Sanga e pratica com uma Sanga, você está expressando sua confiança em Buda e no Darma. É crucial praticar os Treinamentos da Consciência Plena com uma sanga, uma comunidade de praticantes. Você precisa de uma Sanga para ter o apoio à sua prática. Uma verdadeira Sanga sempre possui Buda e Darma no coração.


No Budismo, a prática devocional está baseada no que pode ser visto, ouvido e tocado. Se não estivermos em contato com o Buda físico, não conseguiremos estar em contato com o corpo dármico de Buda, ou com o corpo-sanga de Buda. Como temos informações sobre a vida do Buda físico, nossa devoção está bem aterrada. Isto também se dá no Cristianismo. Jesus é alguém que podemos entrar em contato. As informações sobre a vida e ensinamentos dele estão disponíveis.



No Anguttara Nikaya, Buda diz que quando você estiver se sentindo agitado, amedrontado, inseguro ou fraco, se você praticar tomando refúgio em Buda,  no Darma e  na Sanga, o seu medo e instabilidade se dissolverá. Ele contou a estória da luta entre Sakra, o rei dos deuses e os asuras. Sakra ordenou suas tropas de devas, ou soldados celestiais, para que hasteassem sua bandeira de sete jóias; para que toda vez que eles estivessem inseguros para lutar contra os asuras, olharem a bandeira, que encontrariam a força e confiança que precisavam. Isto é natural. Se você confia no seu comandante, lutará bem enquanto soldado. Quando você acredita numa boa causa, terá a coragem de lutar por ela. Buda usou este exemplo para falar sobre tomar refúgio. Quando você tem dúvidas, fraqueza e agitação, se focar sua atenção em Buda, Darma e Sanga, tornar-se-á firme novamente. Este é o fruto da prática dos Três Refúgios na sua forma devocional.



Mas tomar refúgio também pode ser uma prática transformadora. O que faz Buda ser Buda é a iluminação, o Darma vivo, que é fruto da prática. O tripitaka, as três cestas de ensinamentos, é Darma, mas não é Darma vivo. O Darma enquanto fitas de áudio, de vídeo e livros não é Darma vivo. O Darma vivo deve ser observado em um ou uma Buda, alguém totalmente iluminado ou iluminada, ou naqueles que ainda não estão inteiramente iluminados, mas que estão realmente praticando. A essência do Darma é a iluminação, que significa compreender, estar consciente.


A prática da consciência plena é a chave à iluminação. Quando você se torna consciente de algo, você começa a ter iluminação. Quando você bebe um copo d’água consciente de estar bebendo um copo d’água, profundamente com todo o seu ser, a iluminação em sua forma inicial está presente. Estar iluminado é estar iluminado de algo. Estou iluminado do fato de estar bebendo um copo d’água. Posso conseguir alegria, paz e felicidade somente por causa desta iluminação. Quando você olha para o céu azul e está consciente do seu azul, o céu azul se torna real, e você se torna real. Isto é iluminação, e iluminação faz surgir vida verdadeira e a verdadeira felicidade.


A essência de um Buda é a consciência plena. Toda vez que você retorna a sua respiração e pratica respirando profundamente com total consciência você está sendo um Buda vivo. Quando você não tem certeza do que fazer, retorne à sua respiração – inspire e expire conscientemente – e tome refúgio na consciência plena. A melhor coisa a fazer nestes momentos de dificuldade é voltar-se para dentro de si e permanecer plenamente consciente. Quando estiver na cama sem conseguir dormir, a melhor coisa a fazer é retornar à sua respiração. Você fica seguro e feliz sabendo que independentemente do que possa acontecer você está fazendo a melhor coisa que você pode fazer. Tomar refúgio em Buda, não enquanto devoção, mas enquanto uma prática real é muito confortante. Toda vez que você se sentir confuso, furioso, perdido, agitado, ou temeroso, você sempre tem um lugar onde pode retornar. A consciência plena da respiração é a sua própria ilha. É muito segura. “Ser uma ilha para si mesmo” significa que você deve saber retornar para dentro de si em caso de raiva, instabilidade ou perda. Esta prática de tomar refúgio é muito concreta. Quando você retorna à sua respiração – inspirando e expirando profundamente – e acende a luz da consciência plena dentro de si, você está fora de perigo. Neste estado de consciência plena, você é verdadeiramente você mesmo. A lâmpada já está acesa, e é grande a possibilidade de você ver as coisas com maior clareza.


Suponhamos que você esteja num barco cruzando o oceano. Se for pego numa tempestade, fique calmo e não entre em pânico. Para realizar isto, retorne à sua respiração para ser você mesmo. Estando calmo, sendo verdadeiramente a sua própria ilha, você saberá o que fazer e o que não fazer. Se não souber, o barco pode virar. Nós nos destruímos fazendo coisas que não deveríamos. Tome refúgio na consciência plena e verá coisas mais claramente e saberá o que fazer para melhorar a situação. Esta é uma prática muito profunda. A consciência plena faz surgir concentração e concentração faz surgir insight e sabedoria. Este é o lugar mais seguro para nos refugiarmos agora, e não somente no futuro.


A segurança e estabilidade que a sua ilha pode proporcionar dependem de sua própria prática. Tudo depende de sua prática: assar um bolo, construir uma casa, jogar voleibol. Se você for um principiante que pratica voltando-se para dentro de sua ilha toda vez que se sentir triste, desfrutará alguma consciência plena, concentração e paz. No momento que você começa a prática, Buda Darma e Sanga ficam disponíveis, em certa medida, para você. Mas isto não pode ser comparado à consciência plena, concentração e paz de alguém que vem praticando há muito tempo. Inicialmente, Buda pode ser apenas alguma informação que você leu sobre o Buda histórico, o Darma somente o que você ouviu de um amigo, e a Sanga uma comunidade que você contatou uma ou duas vezes. Na medida em que continuar praticando, Buda, Darma e Sanga se revelarão mais inteiramente a você. Seu Buda não é idêntico ao meu. Ambos são Budas, mas o grau pelo qual aquilo é revelado depende da prática da pessoa.


Buda ensinou que existem três características fundamentais da vida: a impermanência, a inexistência do eu autônomo e nirvana. Um ensinamento que contradiga qualquer um destes Três Selos não é um autêntico ensinamento de Buda. Se não soubermos que tudo é impermanente, sofreremos. Se não soubermos que tudo está destituído de autonomia, sem uma identidade absoluta, sofreremos. Mas há a possibilidade de não sofrermos graças ao nirvana. Nirvana é a ausência de delusão relativa à natureza da impermanência e inexistência de um eu autônomo. Se você olhar profundamente dentro da verdadeira natureza da realidade, e compreender a natureza da impermanência e inexistência do eu autônomo, estará livre do sofrimento. Você pode pensar que nirvana é o oposto da impermanência e da inexistência do eu autônomo. Mas se continuar praticando verá que nirvana se encontra dentro do mundo da impermanência e da inexistência do eu autônomo.


Visualize o oceano com incontáveis ondas sobre ele. Por um lado vemos que todas as ondas começam (nascem) e terminam (morrem). Elas podem ser grandes ou pequenas, altas ou baixas. Se olharmos dentro da natureza delas, nós veremos que as ondas são impermanentes e sem uma identidade autônoma. Mas se olharmos mais profundamente, veremos que as ondas também são água. No momento em que a onda compreende que é água, todo o medo da morte, da impermanência e inexistência do eu autônomo desaparecerá. A água é simultaneamente onda e não-onda, embora ondas se constituam somente de água. Noções de grande ou pequeno, alto ou baixo, início e fim, podem ser aplicados às ondas, mas a água está livre de todas estas distinções. Nirvana pode ser encontrado no coração da vida que está caracterizado por nascimento e morte. Por isso, se você praticar tomando refúgio profundamente, um dia saberá que você está livre do nascimento e morte. Você está livre dos tipos de perigos que estiveram lhe assaltando. Quando for capaz de ver isto, você será capaz de construir um barco para passear nas ondas do nascimento e morte, sorrindo, como um bodisatva. Você não mais temerá nascimento e morte. Você não tem que abandonar este mundo e procurar algum paraíso distante para ser livre.


Buda raramente conversava sobre nirvana, o incondicionado, porque ele sabia que se falasse sobre isso, iríamos passar todo nosso tempo falando sobre isso, e não praticando. Mas ele fez algumas poucas afirmações sobre nirvana. Vamos ler uma afirmação retirada do Udana VIII, 3: “Na verdade, existe algo que não nasceu; não se originou; não se criou e não se formou. Se não houvesse algo que não nasceu; não se originou; não se criou e não se formou; seria impossível escapar do mundo nascido, originado, criado e formado.” O Budismo originário não tinha o sabor ontológico que vemos no Budismo posterior. Buda Shakyamuni lidou mais com o mundo dos fenômenos. Os ensinamentos dele eram muito práticos. Teólogos gastam muita tinta, tempo e respiração falando sobre Deus. Isto é exatamente o que Buda não queria que os discípulos dele fizessem, porque ele queria que eles tivessem tempo de praticar samatha (parar, acalmar), vipassana (compreender profundamente), tomar refúgio nas Três Jóias, nos Cinco Treinamentos da Consciência Plena e assim por diante.


Em outras passagens, os ensinamentos de Buda nos revelam o incondicional. Por exemplo, ele diz: “Quando as condições são suficientes, percebemos os olhos como sendo existentes. Quando as condições são insuficientes, percebemos os olhos como sendo inexistentes. Os olhos não vieram de algum lugar no espaço. Os olhos não vão para algum lugar no espaço”. A idéia de vir, ir, ser e não ser são representações e conceitos a serem extintos. Se existe algo que você não consegue falar sobre, é melhor não falar sobre aquilo. Wittgenstein disse a mesma coisa em seu tratado Tractatus Lógicos-Philosophicus: “No que se refere ao que não se pode falar a respeito, não deveríamos dizer coisa alguma.” Nós não conseguimos falar sobre algo, mas podemos experimentá-lo. Podemos experienciar o que não nasce e não morre; o que não tem início nem fim, porque isto é a própria realidade. A forma de experimentar isto é abandonando o nosso hábito de perceber tudo através de conceitos e representações. Os teólogos gastaram milhares de anos falando sobre Deus enquanto representação. A isso se chama onto-teologia, que fala sobre o que não deveríamos falar.


O Buda que experienciamos aqui e agora é a consciência plena. A consciência plena é uma formação mental como qualquer outra formação mental. Ela tem uma semente em nossa consciência individual e em nossa consciência coletiva. Esta é uma jóia preciosa enterrada profundamente na Terra para nós descobrirmos e explorarmos. Quando desenterramos esta jóia, podemos transformar toda a situação. Assim Buda surge – não a partir do nada, do não-ser, mas de uma semente búdica, de uma natureza búdica. A natureza búdica é, antes de tudo, a consciência plena. A prática da consciência plena é a prática de dar à luz a Buda no momento presente. Este é o Buda real. É por isso que Buda é às vezes descrito no budismo Mahayana como o Tathagata, àquele que veio da substantivação, da realidade tal como ela é. A substantivação não pode ser descrita com palavras ou conceitos. Nirvana, a verdade absoluta, a realidade tal como ela é, são objetos de nossa verdadeira percepção e discernimento. Mas um objeto de percepção sempre inclui o sujeito de percepção. Com consciência plena, podemos ver claramente a natureza da realidade. A consciência plena com o apoio da concentração, respiração consciente e investigação profunda, torna-se um poder que consegue penetrar profundamente e diretamente no coração dos fenômenos. Isto não é especulação ou uso de conceitos e palavras, mas compreensão direta. Finalmente, a verdadeira natureza da realidade se revelará a nós enquanto substantivação. A realidade como ela é não pode ser descrita com palavras e conceitos, mas pode ser penetrada através do prajña, compreensão verdadeira. Em cada um de nós, a semente da consciência plena pode ser descrita como o ventre de Buda (tathagatagarbha).


Todos nós somos mães de Buda, porque todos nós estamos grávidos de Buda. Se soubermos cuidar do nosso bebê Buda, um dia este Buda se revelará a nós. Por isso, em Plum Village nós nos curvamos com as mãos juntas para cumprimentar uns aos outros, dizendo silenciosamente: “Um lótus para você, um Buda a ser”. Vemos a outra pessoa como a mãe de um futuro Buda. Em cada um de nós existe um Buda-embrião, a semente da consciência plena, e é nisto que precisamos nos refugiar em nossa vida diária. Diz-se que Buda tem dez nomes, e o primeiro Tathagata significa “aquele que veio da substantivação, que permanece em substantivação e retornará à substantivação.” Tal como Buda, nós viemos da substantivação, permanecemos em substantivação e retornaremos à substantivação. Não temos lugar algum para ir, não viemos de lugar algum, e estamos indo a nenhum lugar.


Não é somente a verdade absoluta que não pode ser falada a respeito. Não é somente Buda que é assim. Nós também somos assim. Nada pode ser concebido e falado a respeito. Um copo de suco de laranja é em si mesmo uma realidade absoluta. Não conseguimos falar sobre um suco de laranja para alguém que nunca o provou. Independente do que dissermos a outra pessoa, ela não terá uma verdadeira experiência do suco de laranja. A única maneira é bebendo-o. É como uma tartaruga dizendo a um peixe sobre a vida na terra seca. Você não consegue descrever terra seca para um peixe. Ele jamais compreenderia como alguém poderia ser capaz de respirar sem água. As coisas não podem ser descritas através de conceitos e palavras. Elas só podem ser encontradas pela experiência direta.


Quando Wittgenstein disse: “O que não se pode falar a respeito não deveria ser falado a respeito”, você poderia pensar que existem coisas que conseguimos falar sobre elas e coisas que não conseguimos. Mas de fato nada pode ser falado a respeito, percebido ou descrito por representações. Se você fala sobre coisas que não experimentou você está desperdiçando o seu tempo e o tempo das outras pessoas também. Na medida em que continua praticando tomar refúgio, você verá isto cada vez mais claramente, e poupará muito tempo, papel e iniciativas de publicações, e terá mais tempo para curtir o seu chá e viver a vida diária em estado de consciência plena.



O segundo nome de Buda é Arhat, que significa “aquele que é digno de nosso apoio e respeito”. O terceiro é Samyaksambuddha, “aquele cujo conhecimento e prática são perfeitos”. O quarto é Vidyacaranasampana, “aquele que está equipado com conhecimento e prática”. O quinto é Sugata, “aquele que é bem vindo”. O sexto é Lokavida, “aquele que conhece bem o mundo”. O sétimo é Anutta-rapurusa-damyasarathi, que significa “líder insuperável das pessoas a serem treinadas e ensinadas”. O oitavo é Sastadeva-manussana, “professor dos deuses e humanos”. O nono é Buddha, “o iluminado”. O décimo é Bhagavat “o abençoado”. Toda vez que tomamos refúgio em Buda, tomamos refúgio no ser que possui estes atributos. Quando tomamos refúgio em nossa consciência plena, nós tomamos refúgio na semente destes atributos dentro de nós.


No Budismo Mahayana, o ventre do Tathagata, tathagatagarbha, é equivalente ao Dharmakaya, corpo dármico. Quando falamos sobre substantivação ou nirvana, estamos falando sobre algo que não deveria ser falado. Buda, na maioria das vezes, conteve-se e não falou sobre estes assuntos, mas de tempos em tempos ele aludia falando sobre outras coisas. O ensinamento de que não há chegada, nem partida, nem ser nem não-ser já era muito claro no Budismo originário. No Budismo Mahayana, estas idéias se tornaram plenamente desenvolvidas, às vezes excessivamente desenvolvidas. Não deveríamos nos perder tanto em coisas deste tipo. Devemos preservar a natureza prática do Darma de Buda. Senão nos tornaremos filósofos, não praticantes.


Quando pratico tomando refúgio na minha respiração, eu digo: “Inspirando, volto-me para dentro de mim. Expirando, eu tomo refúgio na minha própria ilha. A consciência plena é Buda iluminando meu caminho”. Eu pratico a respiração consciente como uma prática de tomar refúgio.


Nós vivemos num mundo impermanente, e sem eu autônomo, um mundo onde muitas ondas estão tentando nos arrastar. Praticamos habitando a nossa consciência plena como sendo a nossa própria ilha. A consciência plena é Buda em pessoa. Também é o Darma e a Sanga. Praticando a respiração consciente nós, com a luz da consciência plena, iluminamos dentro de nós os cinco skandhas ou agregados do ser, que são: forma, sentimentos, percepções, formações mentais e consciência. Existe uma Sanga de cinco elementos dentro de nós, e pode haver uma falta de harmonia entre estes elementos. O sofrimento resulta dos conflitos entre os skandhas. A respiração consciente pode acalmar os conflitos e restabelecer harmonia dentro de nós. Os frutos desta prática são paz e alegria.


Quando você está profundamente consciente, a natureza que não nasce e não morre, não chega e não parte se revela a você, e o medo de perder isto ou aquilo desaparece. Você não tem que abandonar este mundo. Você não precisa ir ao céu para refugiar-se. Você não precisa esperar pelo futuro para ter refúgio. Você toma refúgio aqui e agora. A profundidade do seu refúgio depende de sua prática. Buda, Darma e Sanga estão sempre disponíveis. O ventre do Tathagata está sempre presente. Nós precisamos apenas voltar lá para estar fora de perigo.


Na igreja ortodoxa grega, os teólogos falam sobre “teologia apophatic” ou “teologia negativa”. Apophatic vem da palavra grega apophasis que significa negar. Você diz que Deus não é isso, Deus não é aquilo, até se despojar de todos os conceitos de Deus. O filósofo budista do século dois, Nagarjuna, desenvolveu uma dialética similar para remover nossas idéias da realidade. Ele não descreve a realidade, porque a realidade é o que ela é e não pode ser descrita. Quando os Zens budistas falam sobre matar Buda, eles querem dizem que o conceito de Buda deve ser morto para que o Buda real seja diretamente experimentado.


A idéia de Trindade na Igreja Ortodoxa Cristã é bem profunda e sofisticada. Às vezes os nossos amigos da Igreja Ortodoxa dizem que a Trindade é o programa social deles. Eles começam com o Espírito Santo e o Filho. O Pai pode ser mais difícil de ser tocado, imaginado ou percebido. O Pai pertence ao reino da inexpressividade e deve ser mantido neste reino místico. Mas é possível tocar o Filho e o Espírito Santo. Similarmente, no Budismo nós falamos sobre praticar com o Darma e a Sanga e depois tocar nirvana, o ventre do Tathagata.


O Espírito Santo cria o Filho, de forma que o Filho possa nos mostrar o caminho ao Pai. Eu disse a um monge Cristão: “É muito mais seguro começar com o Espírito Santo. Você tem a capacidade de reconhecer a presença do Espírito Santo toda vez e onde quer que ele se manifeste. Ele é a presença da consciência plena, compreensão e amor, a energia que anima não somente Jesus, mas todos nós. Esta energia nos ajuda a reconhecer o Cristo vivo e tocar a base do ser que é o Deus Pai. No Budismo, o Espírito Santo é chamado de consciência plena, despertar, prajña, maitri e karuna. Tocando estas energias você toca Buda e nirvana.”


A teologia da morte de Deus, a idéia do Cristianismo ateísta e secular está muito dentro deste espírito. Você depende da pessoa de Jesus Cristo e dos ensinamentos dele, e da prática. Isto é muito inteligente e pragmático. Se você começar com a idéia de Deus, poderá ficar emperrado. Na Igreja Ortodoxa grega, a idéia de deificação, que a pessoa é um microcosmo de Deus, é muito inspiradora. Já era evidente no século quatro, e é muito parecida com a tradição asiática, que afirma que “o corpo de um ser humano é um mini-cosmos”. Deus criou os humanos para que os humanos possam se tornar Deus. Um ser humano é um mini-Deus, um micro-theos. Isto se aproxima da idéia do Tathagata está em cada um de nós. Nós estamos todos grávidos de Buda. De acordo com a teologia da deificação, os humanos são criados para participar na divindade de Deus, não somente enquanto criações separadas. A deificação é formada não só do espírito, mas do corpo humano também. De acordo com o ensinamento da Trindade na Igreja Ortodoxa, o Pai é a fonte da divindade que engendra o Filho. Com sua “palavra” (logos, em grego), Ele faz surgir o espírito que está vivo no Filho. Isto é comparável a natureza não-dual de Buda, Darma e Sanga.

A coisa mais importante em um diálogo inter-religioso é que cada lado diga ao outro como praticam. Se nos reunirmos por cinco ou dez dias, devemos ser capazes de compartilhar uns com os outros como vivemos nossas vidas, como praticamos tomar refúgio, como rezamos, meditamos e assim por diante. Para mim, os Cinco Treinamentos da Consciência Plena são práticas de consciência plena. Os Três Refúgios também são práticas de consciência plena. “Tomo refúgio na Sanga” é muito mais uma prática; não uma devoção.



No Cristianismo, o mistério é, às vezes, descrito como sendo a escuridão. Desde os séculos três e quatro na Igreja Ortodoxa grega, a idéia de escuridão já existia e se tornou uma fonte de misticismo Cristão. Escuridão significa não conseguir entender algo, não conseguir compreender algo claramente com o intelecto; isto é misterioso. Quando Victor Hugo perdeu sua filha Leopoldina, ele queixou-se dizendo que “O homem só enxerga um lado das coisas, o outro lado está mergulhado na noite do mistério amedrontador”. No Budismo, o mistério é descrito em termos de luz. No Sutra Avatamsaka, Buda é luz. Se você for tocado por um dos feixes de luz, se tornará iluminado. No Sutra Avatamsaka, Buda estava dando uma palestra na forma de Buda Vairocana, isto é, Buddha Dharmakaya, e humanos, deuses, Budas e bodisatvas, carpinteiros, reis, policiais, todos ali reunidos experimentaram bem aventurança porque eles tinham sido tocados pelo feixe de luz emanado por Buda. No Budismo, a palavra avidya significa falta de sabedoria, discernimento e luz. Vidya, compreensão, é feita de luz. Tudo o que é místico e maravilhoso está no lado da luz, não no lado da escuridão. Mesmo que não possa ser apreendido pelo conhecimento conceitual, é luz.


Numa pequena estória, Alphonse Daudet fala sobre um pastor numa montanha que fez o sinal da cruz quando ele viu uma estrela cadente. A crença popular é que no momento em que você vê uma estrela cadente, uma alma está entrando no céu. Fazer o sinal da cruz é uma forma de tomar refúgio na Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Quando você acredita que algo é a encarnação do mal, você sustenta uma cruz para afugentar aquilo para longe. No Budismo popular, quando as pessoas vêem algo que elas acham maléfico, também invocam o nome de Buda. Esta é a prática da devoção. Quando há luz, a escuridão desaparece.


Mas se aprendemos o princípio da não-dualidade, nossa compreensão muda. Uma prática da consciência plena é recitar este verso quando acendemos a luz do quarto:



O esquecimento é escuridão, consciência plena é luz.
Estou acendendo a consciência plena para que brilhe sobre toda vida.



Nós poderíamos compreender isto como um tipo de luta entre a luz e a escuridão, mas na realidade, é um abraço. Quando a consciência plena é praticada continuamente será suficientemente forte para abraçar o seu medo ou raiva, e transformá-los. Recitar um mantra não é como segurar uma cruz para afugentar o mal para longe. Deve ser praticado de um modo não violento e não dualístico.


No Cristianismo, tomar refúgio está expresso pelo corpo de Jesus. Para algumas pessoas, a imagem da cruz expressa excessivo sofrimento. Deve haver formas de representar o Pai, o Filho e o Espírito Santo enquanto paz, alegria e felicidade que não seja através da imagem da cruz. Algumas pessoas dizem que elas se sentem mais em paz quando vêem a imagem de Buda sentado, sorrindo. Olhar para uma pessoa que foi crucificada por dois mil anos pode ser insuportável. Eu gosto muito do fato desta prática estar manifesta em um corpo, mas que tal uma imagem de Jesus segurando um cordeiro? Isto poderia ser mais atraente. Quando praticamos a meditação sentada, ela se expressa no corpo. Quando praticamos prostrações também é um ato de tomar refúgio. Todos os cinco elementos estão todos focados em uma direção: o mastro da consciência plena.


No Cristianismo, a Eucaristia é um ato de tomar refúgio em Jesus, Deus. Quase nada se diz sobre experienciar profundamente o Darma e a Sanga. Sem a Sanga, a comunidade da igreja, e sem o ato de comer o pão e beber o vinho em estado de consciência plena, não haveria Jesus. A Sanga tem sido importante no Cristianismo. As pessoas nunca celebram a Eucaristia a sós, mas sim juntas enquanto uma Sanga. Na igreja originária, a expressão “Nós todos somos um corpo” era muito usada. Mas a hierarquia da igreja se tornou opressiva e conseqüentemente a Sanga se enfraqueceu.


Na prática Budista, nós enfatizamos a Sanga. Diz-se que abandonar a Sanga é como um tigre partindo da sua montanha. Um tigre que desce à planície pode ser capturado e morto pelos humanos. Um praticante sem uma Sanga pode abandonar a prática dele.


Sanga significa comunidade. Existem quatro comunidades: dos monges, das monjas, das mulheres laicas e a dos homens laicos. Eu adiciono elementos de apoio que não são humanos, como árvores, almofadas, rochas, água e pássaros. Um seixo, uma folha, uma dália, uma árvore, um pássaro e um caminho estão todos pregando o Sutra Saddharmapundarika, se soubermos como escutá-los. No Sutra da Terra Pura (Sukhavativyuba) está dito que quando o vento sopra através das árvores, podemos ouvir o ensinamento dos Quatro Pilares da Consciência Plena, do Caminho Óctuplo, dos Quatro Poderes e assim por diante. Todo o cosmos está fazendo um sermão e praticando o Darma de Buda. Se estivermos atentos, podemos tocar esta Sanga.


Qualquer pessoa que queira praticar precisa de uma Sanga. Temos que estabelecer pequenas Sangas a nossa volta para apoiar nossa prática. Sem uma Sanga, quando ficamos exauridos, não temos os meios de nos nutrir. Criando uma pequena Sanga, podemos encontrar uma Sanga maior à nossa volta e dentro de nós.



A prática de tomar refúgio pode ser feita todo dia, muitas vezes ao dia. Toda vez que você se sentir indisposto, agitado, triste, temeroso ou preocupado, estes são momentos de você retornar à sua ilha da consciência plena. Se você pratica retornando à sua ilha enquanto não estiver experimentando dificuldades, enquanto não estiver com um problema, será muito mais fácil e mais agradável. Não espere até que uma onda lhe derrube para voltar à sua ilha. Pratique retornando à sua ilha, vivendo plenamente consciente cada momento de sua vida. Se a prática se tornar um hábito, quando os momentos difíceis chegarem será natural e fácil fazê-la. Caminhar, respirar, sentar para comer em silêncio e beber chá em estado de consciência plena são todas práticas de tomar refúgio. Cada prática de consciência plena contém todas as outras práticas. Se você apenas praticar tomando refúgio, estará também praticando o Caminho Óctuplo, os Quatro Pilares da Consciência Plena e tudo o mais. Uma porta do Darma contém todas as outras portas.



Tomar refúgio não é uma questão de crença. Esta prática está muito aterrada em nossa experiência. Você sabe que tem a semente da consciência plena dentro de si. Você tem a ilha dentro de si. Esta não é uma questão metafísica. A sua inspiração e expiração estão à sua disposição; sua semente de consciência plena está sempre presente. Tomar refúgio é uma questão de prática diária. Nos templos Budistas, nós usamos as palavras công phu (kung fu em chinês), que significa “prática diária”, não “artes marciais”. Um bom aluno ou professor sempre retorna e toma refúgio na consciência plena da respiração quando está furioso ou preocupado.


Quando recebemos más notícias e nos sentimos abalados, a melhor coisa a fazer neste momento é tomar refúgio. No ocidente, quando você tem que dar uma má notícia a alguém, você pede para a pessoa se sentar. Pedir para sentar é bom, porque você teme que a pessoa desmaie. Mas você também pode pedir a ela para inspirar e expirar e se tornar calma e forte. Até mesmo notícias boas podem fazer a pessoa desmaiar. Se você ouvir que ganhou dez milhões de dólares na loteria, pode ter um ataque cardíaco e morrer.



Nem sempre é fácil praticar tomando refúgio deste jeito. Devido a nossa tendência de acreditar em um “eu” autônomo, nós precisamos praticar profundamente para compreender a natureza da inexistência de chegada e inexistência de partida. Senão, ficaremos com a idéia fixa de que antes de termos nascido, estávamos em algum lugar e quando morrermos, nós vamos para algum lugar. Por não saber onde estamos indo, sentimos medo. O ensinamento da Terra Pura garante as pessoas que se elas praticarem bem agora, elas renascerão na Terra Pura de Buda Amida. Existem outras Terras Puras também, como a Abhirati de Aksobhya. Muitos budistas querem renascer no Céu de Tushita para estarem com Buda Maitreya, pois quando chegar hora deste Buda renascer na Terra, elas querem vir com ele. Para renascer na Terra Pura você tem que praticar recordando-se de Buda (buddharusmrti). Durante sua vida cotidiana, você invoca o nome de Buda e foca sua atenção em Buda. Esta é uma forma de tomar refúgio. Você pratica ou visualizando Buda com as suas trinta e duas lindas marcas ou invocando o nome dele. O nome de Buda pode fazer surgir às boas qualidades de Buda. Durante o tempo em que estiver praticando, você habitará este tipo de refúgio em Buda. Você está próximo a ele, à ilha. Você água dentro de si a semente da budeidade, isto é, consciência plena e benevolência. Depois aprende do seu professor que a Terra Pura está dentro do seu coração. Estes são passos graduais em direção ao ensinamento de inexistência de chegada e inexistência de partida. Muitas pessoas precisam de um lugar para ir antes de compreenderem que não têm que ir a lugar algum.


Precisamos nos lembrar que as Terras Puras são impermanentes. No Cristianismo, o Reino de Deus é o lugar aonde você vai para a eternidade. Mas no Budismo, a Terra Pura é um tipo de universidade onde você praticará com um professor por algum tempo, se graduará e então retornará mais uma vez. Um ser iluminado chamado Buda Amida pediu às pessoas que tinham afinidade com a prática para vir praticar com ele, para que elas pudessem se graduar um dia e se tornar pessoas totalmente iluminadas. Se você compreender que a Terra Pura está dentro do seu coração, como no ensinamento do Sutra Avatamsaka, você não precisa de tempo ou de um local distante para instituir uma Terra Pura. Você pode fundar uma Sanga, uma mini-Terra Pura, em casa, neste exato momento.



Eu gostaria de re-frasear as fórmulas clássicas para se tomar refúgio: “Voltando, tomando refúgio em Buda dentro de mim, eu me comprometo a realizar o Grande Caminho para fazer surgir a mente mais elevada”. A mente mais elevada é bodhicitta [lê-se: boditchita], a intenção ou determinação de praticar e ajudar incontáveis seres vivos até que você alcance a total iluminação. Existem pessoas que praticam apenas para aliviar os sofrimentos delas sem pensar no sofrimento dos outros. Esta não é a mente mais elevada.


“Retornando, e tomando refúgio no Darma dentro de mim, eu me comprometo a alcançar compreensão e sabedoria tão vastas quanto o oceano”. O Darma vivo pode ser tocado somente através da manifestação de um Buda, uma Sanga ou um bom praticante.


“Retornando, e tomando refúgio na Sanga dentro de mim, eu me comprometo, juntamente com todos os seres, a ajudar a construir uma Sanga livre de obstáculos”. Se você estiver motivado pelo desejo de estabelecer uma pequena Sanga para praticar e alegrar os amigos com a prática, você está praticando o terceiro refúgio. Se você sofre porque não tem confiança na sua prática e sente-se à beira de deixar a Sanga, isto é desastroso. Se você se sente infeliz na Sanga, se acha sua Sanga muito difícil de lidar, é melhor se esforçar para continuar com ela. Não precisamos de uma Sanga perfeita. Uma imperfeita já é suficientemente boa. Podemos dar o melhor de nós para nos transformar em um elemento positivo da Sanga e animar o resto do grupo, apoiando-o com nosso esforço.



Os Três Refúgios é uma prática muito profunda. Nós simplificamos as frases com palavras simples para que até mesmo os jovens possam compreendê-las facilmente:



Tomo refúgio em Buda, aquele que me mostra o caminho nesta vida.
Tomo refúgio no Darma, o caminho da compreensão e do amor.
Tomo refúgio na Sanga, a comunidade consciente e harmônica.


Sabemos que as Três Jóias interexistem. Sem o Darma e a Sanga, Buda não é Buda. Até mesmo os Budas-a-ser precisam de um corpo dármico e um corpo-sanga. Somos nós quem decide construí-los. O nosso corpo dármico deve ser um corpo vivo e não somente um conjunto de dogmas ou idéias. O nosso corpo-sanga deve ser uma comunidade viva, e não apenas um sonho de procurar uma terra ou procurar pessoas da mesma opinião. A melhor maneira é manifestar isto aqui e agora: fazer desta Sanga uma Sanga viva hoje, fazer o Darma que aprendemos o Darma vivo hoje. Se formos determinados, tudo se reunirá. Aprendendo com o Sutra sobre a melhor maneira de viver sozinho, nós praticamos no momento presente para desfrutar o momento presente, que é a nossa Sanga aqui e agora.



Um Buda como Shakyamuni pode ser visto através do corpo dármico e do corpo-sanga dele. Quando você entra em contato com o corpo dármico e o corpo-sanga dele, você entra em contato com ele. Não deveríamos nos queixar por termos nascido dois mil e seiscentos anos depois e, portanto, não conseguimos contatá-lo. Estamos em contato com ele. Estamos em contato com o corpo-dármico e corpo-sanga dele neste exato momento. Todos nós Buda-a-ser precisamos nos expressar em nosso corpo dármico e em nosso corpo-sanga. Quando alguém disser algo que nos provoque, podemos retornar a nossa respiração e sorrir, e àquela pessoa terá a chance de tocar o nosso corpo dármico. Quando agimos conscientemente e compassivamente, nosso Darma é um Darma vivo. Toda vez que tivermos alguma dificuldade ou frustração, se retornarmos a nossa respiração e permanecermos em nossa ilha de consciência plena, todos poderão tocar o nosso Darma vivo. Quando temos um grupo de amigos que se apóiam mutuamente na prática do Darma, toda vez que alguém se junta a nós para beber chá, toca o nosso corpo-sanga.



Buda disse que o corpo dos ensinamentos dele permaneceria com os alunos dele, mas fazê-los duradouros seria uma decisão dos alunos. Se não praticarmos, haverá somente livros e fitas, mas se praticarmos, o corpo dármico será um Darma vivo. “Dharmakaya” posteriormente adquiriu o significado de “espírito de Buda”, “energia de Buda”, “Buda verdadeiro”, “base de Buda”. Desenvolveu um sabor ontológico: “a base de todos os seres”, “a base de toda a iluminação”. Finalmente, tornou-se algo equivalente à “substantivação”, “nirvana” e “tathagatagarbha” (“o ventre do Tathagata”). Este é um desenvolvimento natural. O Darma é uma porta que se abre a todos estes significados. Nossa única preocupação é saber quanto tempo gastamos falando sobre estas coisas.



Dharmakaya é a essência de Buda. Às vezes nós o chamamos de Vairocana, o Buda ontológico, Buda enquanto base, a encarnação do Darma, sempre brilhando, sempre iluminando as árvores, a grama, os pássaros, os seres humanos e assim por diante; sempre emitindo luz. É este Buda que está pregando o Sutra Avatamsaka agora e não somente há dois mil e seiscentos anos atrás. Àqueles que entram em contato com Vairocana não precisa de Shakyamuni. Shakyamuni é apenas um raio de luz enviado por Buda Vairocana. Shakyamuni é o Nirmanakaya, o corpo transformação, um clarão enviado pelo centro do fogo, um feixe de luz enviado pelo sol. Não precisamos nos preocupar se um feixe de luz cessa de ser aparente. O sol está sempre presente. O Dharmakaya está sempre presente. Se você não conseguir ouvir Shakyamuni diretamente, mas estiver suficientemente aberto, poderá ouvir Vairocana. Além de Shakyamuni, muitos Budas de transformação estão dando sermões. As árvores, os pássaros, os bambus violeta, as crisântemos amarelas, todos estão dando sermões do mesmo Darma que Shakyamuni ensinou há dois mil e seiscentos anos atrás. Podemos entrar em contato com o Nirmanakaya através de cada um deles.


O primeiro corpo é o Dharmakaya, o segundo corpo é o Sambhogakaya, e o terceiro corpo é o Nirmanakaya. Sambhogakaya é o corpo de bem aventurança. Você pode entrar em contato com este corpo porque Buda realizou o desejo de iluminação plena. Consciência plena está na base da compreensão, compaixão, paz e felicidade. Quando inspiramos e expiramos e nos tornamos conscientes do céu azul, nós o apreciamos. Quando nos servimos de chá em estado de plena consciência, estamos em contato. Paz, alegria e felicidade são frutos da consciência plena. Buda pratica a consciência plena e tem paz, alegria e felicidade imensuráveis, e podemos tocar este corpo de deleite. Toda vez que você tocar algo em harmonia, algo que brilha, tocará o Sambhogakaya de Buda. Este é o corpo-gratificação, o corpo-deleite, que simboliza a paz e felicidade de Buda, frutos de sua prática.


O corpo-gratificação pode ser descrito de duas formas. A primeira é o deleite próprio; e a segunda é o deleite experimentado pelos outros. Quando você pratica a consciência plena, você se deleita com o fruto da sua prática dentro de si. Àqueles a sua volta também se deleitam com a sua felicidade e frutos de sua prática. Quando alguém está feliz e em paz, esta felicidade e paz irradiam ao redor daquela pessoa para os outros se deleitarem. Se praticar bem, você será capaz de enviar muitos Sambhogakayas para dentro do mundo para ajudar a aliviar o sofrimento dos seres vivos. Uma pessoa tem a capacidade de transformar muitos seres vivos se souber explorar a semente de iluminação dentro dela.


Uma vez quando estava num avião, eu tive este pensamento: Se o piloto anunciasse que o avião estava prestes a cair, o que eu faria? Estava claro pra mim que eu praticaria a respiração e sorriso conscientes. Estas seriam a melhor coisa que eu poderia fazer naquele momento. E se, lá embaixo, você soubesse que eu estava praticando respirando e sorrindo durante àquele momento difícil, você ficaria seguro de si. É fundamental que nós não esperemos até um momento crítico desses para começar a prática.


Eu sempre pratico a respiração consciente durante as decolagens e aterrissagens. Isto não quer dizer que durante o vôo eu não o faça, mas eu nunca me esqueço de praticar nesses momentos. Não é porque eu esteja com medo, mas se tornou um hábito. Eu viajo tanto. Eu também tenho o hábito de praticar meditação caminhando nos aeroportos. Eu sempre tento ir cedo ao aeroporto, para não ter que me apressar quando estiver lá. Todos estão apressados, mas sei que é possível estar inteiro praticando a meditação andando até mesmo lá.


As Três Jóias e os Cinco Treinamentos da Consciência Plena são ensinamentos sobre a prática da consciência plena. As Três Jóias envolvem todo ensinamento e são os fundamentos de toda prática. Este é o tipo de prática que você consegue mensurar. Você será capaz de ver o progresso que está fazendo. Sua confiança e fé nas Três Jóias serão fortalecidas a cada dia.


Poderia soar como se a prática devocional e a prática transformadora fossem totalmente distintas, mas isto não é correto. Ambas são práticas vivas. A prática devocional pode também ser transformadora. A prática devocional se apóia mais no outro, embora também haja um esforço próprio. A prática transformadora confia naquilo que já existe dentro de nós, mas como precisamos de uma Sanga e de um professor, no final também contamos com o outro. A distinção não é absoluta, mas há uma distinção.


A prática da consciência plena se encontra tanto na prática devocional como na transformadora. Muitas pessoas acham que a prática da consciência plena é a única prática Budista. A respiração consciente une corpo e mente. Esta é a primeira condição para você entrar em contato com qualquer coisa que você queira entrar em contato, até mesmo um ser superior. Quando você pratica a respiração consciente, torna-se pacífico e forte, e o seu ser já fica mais elevado.



[Capítulo extraído do livro For a Future to Be Possible – Commentaries on the Five Mindfulness Trainings, revised edition 1998, Parallax Press. Tradução por Tâm Vãn Lang]
Fonte: http://sangarecife.blogspot.com.br/p/as-tres-joias-buda-darma-e-sanga.html