Levar o saco de lixo para fora é uma rotina que acontece
invariavelmente todos os dias em grande parte dos lares e empresas. O
caminhão da coleta passa e, como um toque de mágica, faz desaparecer o
inconveniente rejeito cujo mau cheiro não tardaria em atrair insetos e
outros animais indesejados. Tão logo o saco “desaparece”, um novo ciclo
de geração de resíduos tem início até a próxima reaparição dos
coletores. Ao final de um ano a sociedade brasileira terá gerado 68
milhões de toneladas de lixo urbano, volume que vem aumentando em termos
absolutos e per capita. Quer dizer, o aumento do lixo já supera o do
crescimento populacional urbano[1].
[1]
A geração brasileira de lixo cresceu 6,8% em 2010, comparada com os
números do ano anterior – percentual seis vezes maior que o crescimento
da população das cidades no mesmo período –, segundo dados da décima
edição do Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2012, estudo publicado
anualmente pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e
Resíduos Especiais (Abrelpe)
A mesma tendência ocorre na maioria dos países mundo afora com
algumas variações para mais – se muito industrializado – ou para menos.
Para se ter uma ideia do tamanho global dessa encrenca, o volume de
resíduos urbanos deve saltar do atual 1,3 bilhão de toneladas para
inimagináveis 2,2 bilhões de toneladas anuais até 2025 [2].
[2] A estimativa é do Programa da Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma)
Basta uma aula básica de Química, se tanto, para entender que a
mágica praticada pelos coletores não passa de um truque ao estilo do
“varrer a sujeira para debaixo do tapete”. Por volta dos anos 1770,
Antoine Lavoisier resumiu sua descoberta sobre o caráter permanente da
matéria em uma frase que se tornou célebre – na natureza nada se cria,
nada se perde, tudo se transforma.
A teoria vale para o lixo também. Podem triturá-lo, incinerá-lo,
degradá-lo, mas ele nunca desaparecerá. Estará sempre nas imediações,
ainda que com outro formato ou oculto sob algum “tapete”. Tomando
emprestada uma interpretação moderna para a Lei de Lavoisier, usada pelo
economista Sabetai Calderoni no documentário Fazedor de Montanhas, de Juan Figueroa, “ninguém põe o lixo para fora, pois, no mundo, tudo é dentro”.
Os
americanos são os maiores produtores de lixo do mundo, o que não chega a
ser uma surpresa. Com 4 quilos de resíduos por pessoa ao dia,
equivalente a uma montanha de 210 milhões de toneladas ao ano, são os
que menos reciclam (27%) entre os países desenvolvidos.
Como de praxe, o país que mais desperdiça é também o que reserva os
mais belos exemplos. San Francisco, cidade do estado da Califórnia com
pouco mais de 800 mil habitantes, lançou em 2009 a estratégia lixo zero
(zero waste) e fixou prazo até 2020 para executá-la integralmente. E,
pelo ritmo, nem precisava tanto tempo. Hoje, apenas 17% dos resíduos
urbanos da cidade ainda seguem para aterro sanitário. Tudo isso, sem ter
sido necessário aplicar nenhuma penalidade às empresas ou moradores.
Estratégias muito fortes de compostagem e reciclagem, além de muita
educação, são a base desse trabalho (para saber mais, acesse o site sfenvironment.org/zero-waste).
Quanto mais industrializado o país – relata o especialista em gestão
de resíduos sólidos urbanos, diretor da Giral Viveiro de Projetos,
Mateus Mendonça –, menor a geração de resíduos orgânicos e maior a
fração de recicláveis. Parece bom, mas não é. O ideal é reduzir ao
máximo o volume de lixo não orgânico. Primeiro, porque nem todo resíduo
com potencial reciclável entra na coleta seletiva e segue destino para
as usinas de reprocessamento. Ao contrário, a maior parte termina
misturada ao material orgânico e ambos transformam-se em rejeitos (lixo
não aproveitável). Segundo, porque os processos de reciclagem, embora
importantes, também provocam um impacto nada desprezível no meio
ambiente (mais na reportagem “A outra face da reciclagem”, edição 21).
O
ideal é zerar a produção de resíduos recicláveis e produtos
descartáveis pelas empresas. Impossível? Considerando-se o modelo
econômico predominante, ainda longe de incorporar a sustentabilidade
como vetor para a produção de bens de consumo e serviços, a resposta é
sim. “Concentração populacional, consumismo e mais uma série de
características da vida urbana afastam a possibilidade do lixo zero”,
afirma Mateus Mendonça.
Entretanto, um salto nesse sentido pode ser dado se o comércio
tradicional (compra e venda) for crescentemente substituído por
contratos de prestação de serviços, em que os fabricantes passam a
alugar ou arrendar seus produtos. Por exemplo, nessa chamada “economia
de serviços” a empresa operadora de TV a cabo vende um pacote de
entretenimento que deve incluir o fornecimento de todos os meios para
que o serviço chegue à casa do consumidor, incluindo o televisor e
demais acessórios. “Quando os meios se tornarem obsoletos, a empresa os
substitui e, com isso, a logística reversa já fez meio caminho, sem que o
consumidor gerasse resíduos ele próprio”, exemplifica Mendonça.
POR CIMA DO CARPETE
Entre os casos de gestão socioambiental mais emblemáticos e
inspiradores está o da líder mundial em carpetes modulares, a americana
Interface, empresa que migrou para a economia de serviços. Em vez de
vender carpete, vende o serviço de instalação e de manutenção. E aposta
fortemente no reúso. Os clientes recebem visitas periódicas da empresa
para troca das placas modulares que eventualmente estejam mais gastas. O
material recolhido é reinserido na cadeia de produção como
matéria-prima, ou “materia-seconda”, como também é chamada. Assim,
fecha-se o tão sonhado ciclo do berço ao berço[3] (do inglês cradle to
cradle), um dos caminhos para a geração zero
A história da Interface é bem maior. O fundador e chairman Ray
Anderson deixou-a registrada no livro Lições de Um Empresário Radical,
de 2008[4]. Sua meta – denominada missão zero – é “bloquear todas as
chaminés, fechar todas as tubulações de efluentes e não tomar nada da
terra, principalmente petróleo, que não possa ser facilmente renovado
até 2020”.
Como não foi possível substituir o uso de derivados do petróleo de
uma só tacada, enquanto equipes da Interface desenvolviam tecnologia
para o uso material renovável na confecção dos carpetes, outras
vasculhavam aterros sanitários por todo o país à procura de restos de
carpetes de empresas concorrentes para, assim, aumentar a fração de
matéria-prima reciclada e, por tabela, diminuir o consumo de novos
materiais não renováveis.
[3]
Em oposição à expressão “do berço ao túmulo”, que representa um modelo
linear de produção (produção, consumo e descarte), o suíço Walter Stahel
cunhou o termo “do berço ao berço”, segundo o qual os produtos
pós-consumo são desenhados para serem reaproveitados como matéria-prima
na própria cadeia produtiva, ou na cadeia de outro segmento, fechando o
ciclo
[4] Lançado pela Editora
Cultrix, São Paulo, com o subtítulo: “Como o CEO de uma desconhecida
companhia conseguiu dobrar o faturamento, conquistar novos clientes,
motivar funcionários e gerar inovação com um objetivo muito simples: não
tirar da terra o que a terra não possa repor”
BONS VENTOS
Algumas ações corporativas relacionadas aos três “Rs” dos resíduos
sólidos (reduzir, reusar e reciclar, mais em “Os ‘Rs’ fundamentais”)
estão chegando ao Brasil no rastro dos projetos globais das grandes
corporações multinacionais. A rede Walmart está entre elas. Com uma
estratégia de sustentabilidade baseada em três pilares – clima e
energia; produtos sustentáveis; e resíduos sólidos –, o desafio da
empresa é zerar o envio de resíduos para aterros sanitários até 2025 em
esfera global. O programa Impacto Zero do Walmart foi implantado no
Brasil em 2008. No ano passado, já deixaram de seguir para aterros e
lixões 40% do total de resíduos gerados em suas lojas – 6% foram
destinados à compostagem e ração animal e o restante encaminhado para
reciclagem.
A empresa também investe na redução de geração de resíduos. Há uma
forte campanha promocional no Brasil para o não uso de sacolas
plásticas, inclusive com descontos para os clientes que as recusam – 3
centavos para cada 5 itens não embalados em sacolas plásticas
descartáveis. “Já concedemos R$ 1,06 milhão de descontos, equivalente a
30 milhões de sacolas”, informa a diretora de sustentabilidade do
Walmart, Camila Valverde.
A rede ainda mantém uma estratégia de redução de embalagens na
relação com os fornecedores. “A mudança no início da cadeia produtiva é
fundamental. Produz ganho em escala e tem reflexo na extração de recurso
natural”, afirma. Um trabalho recente em parceria com a Johnson &
Johnson resultou em redução de 18% na caixinha do curativo band-aid.
“Com essa redução na embalagem, a Johnson & Johnson está usando 80
contêineres a menos nas exportações do produto para os Estados Unidos”,
relata.
LIXO VERDE E AMARELO
Enquanto alguns países já discutem o lixo zero, o Brasil engatinha em
todos os aspectos que envolvem a redução, reúso e reciclagem de
resíduos sólidos. Brasileiros produzem bem menos resíduos per capita que
americanos, entre 1 e 1,2 quilo ao dia. A razão principal é a grande
parcela da população ainda excluída do mercado de consumo.
Em boa parte do País, o descarte do lixo não segue métodos
minimamente apropriados. Apenas cerca de 58% do total coletado tem como
destino os aterros sanitários, terrenos que funcionam de acordo com as
exigências legais. O restante é despejado em aterros controlados (24,2%)
e em lixões[5] (17,8%), que tecnicamente guardam poucas diferenças
entre si. O Brasil também recicla pouco: cerca de 4%, e seria ainda
menos se não houvesse uma forte intervenção e organização de catadores
(mais na reportagem “Vale mais do que pesa”).
[5]
A meta brasileira para acabar com os lixões, prevista na Política
Nacional de Resíduos Sólidos, Lei nº 12.305/2010, vence em agosto do ano
que vem
“Nossa política de resíduos é recém-lançada”, lembra a pesquisadora
Rizpah Besen, da Faculdade de Saúde Pública da USP, o que ajuda a
explicar o atraso brasileiro em relação a outros países na gestão do
lixo. “A Europa está debruçada sobre o tema há mais de 20 anos e, por
isso, tem metas de redução muito mais avançadas.” Ainda assim, poucos
países europeus, segundo ela, estão conseguindo reduzir a geração. “Na
Alemanha, com uma das maiores taxas de reciclagem no mundo (46%), poucos
estados e municípios traçaram metas ambiciosas de redução.”
Rizpah explica que, para reduzir as montanhas de lixo, além de um
trabalho intenso em educação, é imprescindível o uso de alguns
instrumentos econômicos. Compras “verdes” por parte do governo, por
exemplo, estimulariam esse mercado. A desoneração tributária, idem. “A
matéria-prima reciclada costuma ser mais cara do que a virgem por causa
das bitributações (o imposto incide sobre o material virgem e o
reciclado)”, justifica. Outro instrumento é a taxação por domicílio, que
chegou a ser tentada em São Paulo entre 2002 e 2005, mas derrubada pela
administração municipal seguinte.
Para Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia
da FEA-USP, o Brasil ainda é uma sociedade do jogar fora. “Precisamos
rapidamente nos tornar, pelo menos, uma sociedade recicladora.” Mas,
segundo ele, enquanto estiverem envolvidos nesse projeto apenas a
sociedade civil, o governo e os catadores, não se avançará. As empresas
precisam compartilhar essa responsabilidade, investindo em programas
educativos e pagando para que seus resíduos desviem-se dos lixões e
aterros e sigam para reciclagem (mais sobre logística reversa em “Eterno Retorno”).
Os catadores, hoje os principais responsáveis pela tarefa, recebem
apenas pelos resíduos que conseguem vender. Eles precisam receber também
pelo serviço ambiental que prestam a toda a sociedade.
O VELHO TRUQUE DO FOGO
Enquanto tantos gargalos persistem, o lixo segue acumulado em
condições degradantes. Por causa disso, alguns grupos ligados à gestão
de resíduos começam a defender a instalação de incineradores em regiões
litorâneas, onde é proibida a construção de aterros sanitários. Rejeitos
gerados em municípios do litoral paulista, incluindo a Baixada
Santista, precisam ser transportados até aterros da capital ou do
interior do Estado. Para resolver esses casos pontuais, o advogado
Fabrício Soler, do escritório Felsberg, acha positivo o uso de
incineradores, tecnicamente denominados unidades de recuperação de
energia, a partir dos quais também se gera energia elétrica.
Segundo Soler, a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental
(Cetesb), ligada à Secretaria do Meio Ambiente do governo paulista, já
editou uma norma para controle de emissão atmosférica que habilita o uso
desse tipo de equipamento. “Até que me provem o contrário, um país que
está repleto de lixões tem de ganhar tempo e, se bem operado e bem
fiscalizado, o incinerador funciona.”
Se, por um lado, os incineradores resolvem a questão da falta de
espaço (são muito usados na Europa e no Japão), por outro implicam um
rol de graves problemas. Durante debate sobre resíduos sólidos realizado
em agosto pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), o
presidente da Central de Cooperativas de Materiais Recicláveis do
Distrito Federal, Ronei Alves, expôs alguns deles: emissões de
gases-estufa que atravessam os filtros; geração de cinzas que podem
conter partículas perigosas; custo do equipamento em torno de US$ 250
milhões para atender a uma cidade de médio porte; falta de operadores
capacitados; necessidade de queima de material com potencial reciclável
junto com orgânico para se obter combustão adequada; e descarte dos
filtros do incinerador com toda a matéria tóxica neles retida.
A bióloga Maluh Barciotte, especialista em consumo responsável e
pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde
(Nupens), da USP, faz uma analogia entre incineradores e medicina
curativa. Não é a práxis, mas já é perceptível que a medicina caminha em
direção à prevenção de doenças. “Desenvolver e ministrar drogas já não
basta”, explica. Quando se trata das epidemias de diabetes tipo 2 e
obesidade em crianças, é necessário intervir na qualidade da
alimentação. Filtros equivalem a remédios que controlam doenças. “No
caso do incinerador, apenas mudará a poluição de um meio para outro,
mais precisamente do ar para o solo, no aterro.” Como diria Lavoisier…
A pior doença que nós sofremos é o consumismo. Tenho debatido isso com as pessoas (mesmo e principalmente no âmbito familiar), e sabe o que? Ninguém quer ouvir, eu sou uma "ecochata". Ou então estou falando para as pessoas erradas, no lugar e no tempo errados. É mais fácil fingir que não é com a gente e deixar "que se danem as gerações futuras", evitando a responsabilidade; é isso o que eu acho que as pessoas pensam. Assim elas conseguem ficar em paz com sua consciência.
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