"Eu só poderia acreditar num Deus que soubesse dançar!" F. Nietzsche
Levam-se em média quinze anos para formar uma
dançarina profissional no Oriente Médio. É um dança milenar, registrada em
torno de 5.000 a.C., desde o reino da antiga Mesopotâmia. Tem cerca de 3.000
movimentos possíveis de serem executados pelo corpo feminino. Sua base
histórica tem origem nas danças beduínas em rituais de homenagem aos
ecossistemas habitados pelos povos nômades. Essa história começa por volta de
11.000 a.C., em Jericó-Palestina, quando as beduínas passaram a desenvolver o
cultivo agropastoril.
Elas [3] observavam com atenção os répteis jacarés e
crocodilos, pois, sempre que subiam em cardumes o rio Jordão (e, noutras
regiões, o Nilo, o Tigre e o Eufrates), traziam as chuvas que, por sua vez,
deixavam húmus nas margens dos rios. Observando que nestas margens crescia o
trigo, passaram a manejá-lo, plantando sementes em outras áreas, juntando o
húmus como adubo.
Foi assim que as beduínas, com seus companheiros,
começaram a desenvolver a agricultura. Estes répteis passaram a ser
considerados deuses, uma vez que traziam a mensagem de quando poderiam realizar
o manejo do trigo em função das cheias dos rios. Neste período, também
desenvolveram a armazenagem do cereal por longos períodos de seca;
posteriormente, o Ocidente veio a adotar este sistema. Os graneleiros, hoje
também conhecidos como silos, representaram a solução com a preocupação
conceituada como "segurança alimentar".
A fertilidade de Gaya - Mãe Terra
Seriam os sete anos de vacas gordas e magras uma
preocupação dos nossos ancestrais com a segurança alimentar?
As beduínas podiam, a partir da armazenagem do
trigo proporcionada pelo período de semeadura e colheita, realizar o
planejamento familiar. Assim sendo, neste período optavam pela gravidez, pois
havia a garantia de alimento necessário pelos cinco primeiros anos de vida de
suas crianças. Esta decisão, a de ter filhos, de ordem exclusivamente feminina,
era compartilhada pelo companheiro em todo ritual de semeadura, plantio e
colheita. O planejamento familiar estava intimamente ligado aos ciclos
hidrológicos. Água, um bem sagrado que fertiliza a terra e permite que as
mulheres decidam sobre sua fertilidade, dando-lhes a opção de terem quantos
filhos a terra pudesse alimentar. Água, o sêmen de Allah!
As beduínas, agradecidas, dançavam à beira dos
rios de águas doces enquanto realizavam a semeadura e colheita do trigo e
cantavam para os deuses. A prosperidade da tribo era determinada pelos ciclos
hidrológicos, bem como o equilíbrio entre riquezas naturais e seres humanos. O
que ocorreu desde então com a humanidade?
As mulheres perderam a sua relação íntima com os
ciclos hidrológicos e, consequentemente, entre tantos outros fatores (guerras,
doenças, empoderamento), aconteceu o inevitável: desequilíbrio entre riquezas
naturais e seres humanos. Hoje, recursos naturais de menos e gente demais.
As danças beduínas aplicadas na oficina
"Dança pela água em missão de PAZ" objetivam resgatar a memória
ancestral que todas as mulheres possuem das suas relações com o ciclo
hidrológico e menstrual por meio dos movimentos executados pelas beduínas quando
agradeciam aos deuses pelo presente que lhes traziam de bons ventos, boas águas
e boas colheitas.
Estas mulheres construíram mundos riquíssimos como
o dos faraós, a matemática, a agricultura, a astrologia, a medicina, o mercado,
enfim, os valores culturais, políticos e sociais que são os pilares do
Ocidente, ao lado dos seus companheiros, peregrinando pelo mundo árabe, na
África, no Leste Europeu e na Ásia.
A verdadeira essência desta dança também navega
por outros mares. É, especialmente, para a mulher madura, aquela que viveu
todas as alegrias e frustrações do amor, transformando suas experiências de
vida afetiva em movimentos. Movimentos somente possíveis com a explosão de
sentimentos honestos e sinceros. Sentimentos plenamente cantados e visíveis aos
olhos do povo de nossa origem: o árabe.
São necessários muitos anos de audição para captar
as constantes alterações rítmicas das músicas orientais, apurado senso do
significado do que se está dançando e uma boa dose de conhecimento do que
representam os sofrimentos das guerras e os preconceitos na vida do povo árabe
[4].
Essencialmente femininas, essas danças podem ser
acompanhadas por homens, com movimentos masculinos, destacando-se o tórax, os
ombros e os braços. A dançarina deve ser soberana, elegante, manter postura
antes, durante e depois da apresentação. Ter simpatia, charme e,
principalmente, muita humildade.
Quanto mais experiente a dançarina, mais sucesso
faz. A cultura árabe respeita a mulher madura, a exalta e admira. Não
discrimina a mulher de idade. Tem preferência pela mais cheinha, do tipo
gostosa, matreira e vaidosa. Em casas noturnas, restaurantes e festas árabes é
muito comum homens convidarem as mulheres para dançar. É o desafio do homem em
provocar a sensualidade da mulher. Um jeito árabe de flerte (paquera), uma vez
que os costumes e valores morais da cultura são extremamente rígidos.
O povo árabe é totalmente contra os padrões
estéticos do Ocidente, que impõe à mulher ser jovem e magra, tornando a maioria
delas infelizes. Isto sim é submissão! Os valores espirituais da cultura
abominam a vulgaridade, considerando-a ofensiva. Enaltecem a auto-estima
feminina. Exaltam a virilidade masculina com suas músicas e danças de muita
sensualidade.
No Brasil, em 1979, as danças étnicas árabes foram
introduzidas pela mestra palestina Shahrazad Shahid Sharkid, que então iniciava
um trabalho único no mundo, pela Raks el Chark. A meta de seu trabalho era a
pesquisa e o estudo minucioso do corpo feminino pelo registro das mutações
ocorridas a partir da aplicação de exercícios de sua criação. Há também, no
trabalho de Shahrazad, enorme preocupação com a formação de crianças e
adolescentes para a dança do ventre, procurando não confundir o trabalho
corporal adulto com o infantil, ao respeitar seus espaços e suas mentes, tendo
o cuidado de aplicar cronologicamente exercícios de fisioterapia para não
provocar o universo infantil com o estímulo prematuro para a vida sexual.
Estas mutações são parte do cuidadoso trabalho de
anatomia da mestra artesã, uma escultora de corpos, sempre com a preocupação de
estabelecer limites ao corpo, o que não acontece com algumas danças ocidentais,
quando, para alcançar a desenvoltura exigida, é necessário provocar contusões,
quebrar ossos, forçar tendões, tensionar músculos além do suportável, o que
torna cartesiano (reto, linear, quadrado) o corpo feminino, colocando-o em uma
moldura onde todas ficam iguais.
Toda dança tem, evidentemente, um cunho sagrado,
apesar de o Ocidente se apropriar indevidamente da técnica e da história para
vender sexo, impor padrões estéticos e para a exploração do corpo da mulher e
infantil, profanando os arquétipos religiosos. O homem sempre desejou aquilo
que era de Deus e tenta adquirir, pelo manto da "commoditização
erotizada", valores que não lhe pertencem.
Danças folclóricas e de raízes
As "danças folclóricas e de raízes"
possuem um poder indiscutível de aglutinação, pois se constituem na
manifestação do comportamento cultural, histórico e social dos indivíduos.
Refletem em sua construção coreográfica a soberania, o direito a viver
dignamente, a cultura e hábitos dos povos das mais diferentes etnias, cores e
credos, além de contribuir diretamente, pelo prazer que proporcionam, para a
integração e educação de crianças e adolescentes. Estas danças resgatam e
elevam a auto-estima.
Portanto, devemos ter muito respeito por estas
manifestações, que, por sua importância de trabalho em grupo, são verdadeiros
alicerces para o desenvolvimento social. São instrumentos necessários para a
formação do caráter cultural e intelectual, além de apurar o senso crítico
pela observação e audição como formas de sensibilização.
No artigo do semanário Al-Ahram, o coreógrafo Omar
Barghouti discute o significado da cultura e educação na preservação da
identidade nacional e o espírito humano ao mesmo tempo. A criatividade e
o aprendizado são vitais ao projeto de sobrevivência, argumenta Barghouti,
descrevendo como, mesmo sob o cessar fogo, o povo da sua vizinhança de Ramallah
precisa de livros, música e jogos. Mesmo nos campos de refugiados, os pais,
cujas vidas e posses foram dizimadas, estão preocupados em restaurar as escolas
para seus filhos. Mesmo com esta cidade ocupada e destruída, Omar Barghouti
mantém sua atuação na dança.
Barghouti põe esses valores num contexto
histórico. Os palestinos, forçados a fugir de suas casas em 1948, são
assombrados por seu fracasso em resistir, ele diz. Ele explica que esse
fracasso é atribuído à "consciência limitada" do tempo, a qual, nesse
contexto, entende-se como uma combinação de ignorância, analfabetismo, falta de
aptidões essenciais, como também falta de um sentido claro de identidade.
Portanto, cultivar uma tradição de educação e a prática da cultura são a chave
para a sobrevivência dos palestinos como um povo: "os palestinos não podem
se dar ao luxo de não fazer parte da reabilitação cultural na sua batalha ampla
de reconstrução e luta pela emancipação," ele escreve. Neste ensaio
comovente, Barghouti nos supre com a imagem da dança como um símbolo da
sobrevivência e renovação palestina.
Nossa história sobre as danças étnicas árabes é
muito mais longa, mas deixo esta contribuição para a reflexão e conto com todos
para acompanharem este resgate da memória ancestral em busca da equidade
social, dos valores comunitários e coletivos e da determinação de se construir
uma economia justa e equilibrada como foi a dos nossos antepassados, quando a
felicidade era pautada por uma "segurança alimentar" ordenada e
coordenada pelas forças da natureza, com seus ciclos hidrológicos, ao cultuar a
sensualidade como uma dádiva de Deus e exorcizar o erótico profanador e
degradador da natureza humana.
Num tempo em que o ser humano fazia parte do
ambiente e não o partia ao meio!
[1] Raks = dança Charq =
leste, oriente. Charqi = oriental , portanto, Raqsa Ach-Charq (ou Ash-Sharq) é
Dança do Oriente, Dança do Leste; Raqsa Charqyi = Dança Oriental. Raqsa
Ash-Sharq é a pronuncia correta sendo Raqsa Al Sharq, para os egípcios e Raqsa
Charkyi para os libaneses. Agradecimentos a Carlos Tebecherani Haddad,
professor e pesquisador do idioma árabe da Universidade Católica de Santos (SP).
[2] Belle Danse em francês
= bela dança e Belly Dance em inglês = dança do ventre.
[3] São consideradas semitas
todas as tribos beduínas, incluindo-se a etnia hebraica, cuja religião é o
judaísmo. Com a migração destas tribos nômades entre outras que se
miscigenaram, originam-se os ciganos do Ocidente; com a perseguição dos hebreus
no Oriente Médio, advém a expressão "judeu errante", ou seja,
refere-se aos judeus que partem em busca de uma terra, uma nação. (Lactho Drom
¿ Michele Ray-Gravas. La Musique des tsiganes du monde de l¿Inde a l ¿Espagne).
[4] O histórico das tribos
beduínas está registrado na cultura oral. Encontram-se narrativas em suas
músicas, nas danças, nos contos que passam de pais para filhos, nos livros
sagrados como O Alcorão, nas escrituras Baha¿i, na Bíblia, no Talmut etc.;
encontram-se também nos poemas de Rumi, Gibran Kalil Gibran, entre outros
poetas árabes e persas. Os cantos beduínos enaltecem o meio ambiente e a
mulher; relatam o amor do povo nômade pelos ecossistemas desérticos e suas
paixões. A cantora egípcia Om Kalthoun expressou com toda essência de sua
belíssima voz a história desses povos que encantam o mundo por sua passividade,
benevolência e profunda sabedoria milenar. Om Kalthoun morreu cultuada como a
"Mãe do Egito". Uma feminista amada e respeitada. Jamais conseguiram
fazer-lhe calar a voz!
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