Os
estudos de mística comparada e de espiritualidade interreligiosa vão ganhando
espaço cada vez mais singular nas universidades e núcleos de pesquisa que se
irradiam por toda parte. São pesquisas que envolvem também as religiões
orientais, em seu traço místico peculiar. Também no âmbito do budismo pode-se
falar em espiritualidade, entendida como um caminho de busca da libertação.
Esse artigo visa apresentar o tema da espiritualidade zen budista, com base na
reflexão de Eihei Dôgen Zenji (1200-1253), um dos mais importantes e destacados
mestres da tradição Soto Zen.
O objetivo
é mostrar a riqueza dessa espiritualidade e sua peculiaridade de adesão à
realidade cotidiana. Para favorecer a compreensão da questão central
apresentada, visou-se situar a temática no âmbito do contexto histórico do
nascimento do zen budismo e da inserção da presença de Dôgen em seu campo de
ação. A temática da espiritualidade zen foi se evidenciando na abordagem da
problemática da busca do Dharma em Dôgen e de sua atenção aos pequenos sinais
do cotidiano.
Palavras-Chave:
Espiritualidade; Budismo; Zen; Cotidiano; Religiões;
Introdução
Na
introdução de uma obra sobre a espiritualidade budista, a equipe responsável
pelo trabalho – ligada ao Instituto Nazan de Religião e Cultura (Nagóia, Japão)
-, sinaliza que é o budismo, dentre as diversas religiões, que se concentra com
maior ênfase no âmbito da espiritualidade. Não há outra religião que "deu
maior valor aos estados de percepção e libertação espiritual, e nenhuma outra
descreveu, tão metodicamente e com tamanha riqueza de reflexões críticas, os
vários caminhos e disciplinas por meio dos quais esses estados são alcançados,
ou as bases ontológicas e psicológicas que tornam esses estados tão importantes
e esses caminhos tão eficientes" (YOSHINORI, 2006, p. IX).
Dentre as
diversas formas de budismo, o budismo zen traduz essa espiritualidade numa
perspectiva profundamente prática e colada ao cotidiano. O seu grande objetivo
é "captar o fato central da vida" (SUZUKI, 1999, p. 73) no curso
mesmo de sua realização, de forma direta e vital. Mais que um sistema filosófico-teorético,
o zen traduz uma "trama existencial", que envolve aspectos
religiosos, filosóficos e experienciais, sempre interrelacionados (FORZANI,
2007, p. 69). Nessa "atitude de fundo" com respeito à dinâmica da
vida, o zen vai dar uma ênfase fundamental à prática, que deixa de ser um
simples aspecto particular, firmando-se como chave essencial de acesso à
unidade íntima da existência, que escapa à percepção superficial. Por meio dela
desvela-se o processo de concentração e purificação do sujeito, de seu
corpo-mente, favorecendo a captação da intensidade de cada momento e a
possibilidade do exercício de comunhão com o mundo circundante. Mediante o
recurso de um "treinamento sistemático", o zen instrumenta o
pensamento ao exercício de um novo olhar sobre as coisas: "abre os olhos
do homem para o grande mistério que diariamente é representado. Alarga o
coração para que ele abrace a eternidade no tempo e o infinito do espaço em
cada palpitação" (SUZUKI, 1999, p. 66).
Num dos
clássicos livros do Shôbôgenzô , de Eihei Dôgen Zengi (1200-1253), o Bendôwa –
escrito em 1231 -, há um relato interessante sobre a origem remota do zen
budismo (DÔGEN, 2001a, p. 126). Trata-se do clássico ensinamento silencioso de
Buda Shakyamuni no Pico do Abutre. Ali naquele histórico lugar ele girou a flor
de Udumbara, sendo correspondido pelo sorriso de seu discípulo Mahakassyapa
(DÔGEN, 2005b, p. 187). Sem necessitar de nenhum recurso verbal, o grande
mestre utiliza-se do simples gesto de girar uma flor para transmitir o seu
ensinamento. Esse acontecimento simbólico vem colocado no início da transmissão
da escola que na China veio nomeada ch´an e no Japão zen. Esse ensinamento
(Dharma) foi transmitido, como sublinha Dôgen, de patriarca a patriarca até chegar
a Bodidarma (470-532), considerado o iniciador da tradição ch´an na China .
Depois vem transmitido para o segundo patriarca, Hui-ko (487-593), e assim
sucessivamente, envolvendo posteriormente as cinco grandes escolas da tradição
zen: Hogen, Igyo, Unmon, Soto e Rinzai. Dessas cinco escolas, somente a da
tradição Rinzai ganhou importante difusão na China. Duas delas tiveram boa
penetração no Japão, a Rinzai – introduzida por Eisai (1141-1215) -, e a Soto,
introduzida por Dôgen.
É
interessante constatar esse traço do giro da flor e do sorriso na origem do
budismo zen. A flor de Udumbara é uma metáfora do raríssimo despertar na
dinâmica histórica. Sobre esse simbolismo discorre Dôgen em outro livro do
Shôbôgenzô, Udonge, que trata da flor de Udumbara. E como diz o cânone budista,
"uma flor desabrocha e o mundo se levanta" (DÔGEN, 2005b, p. 187-189)
. Dôgen faz aqui menção ao tema da "ressonância". Como assinala Yoko
Orimo, na introdução de um dos volumes do Shôbôgenzô (tradução francesa), dada
a "eclosão de uma só flor, o mundo inteiro se transforma, pois esse mundo
é um mundo da ressonância onde todos os existentes fazem eco uns aos outros,
posto que este eco do universo seja audível à nossa escuta concreta"
(ORIMO, 2005a, p. 18). No processo do "desenvolvimento
de suas pétalas, a flor abre seu coração para escutar o vento, para receber a
água e a luz, para divertir-se com as borboletas e se doar ao mundo. É neste
universo da ressonância onde todas as coisas fazem eco a todas as coisas,
doando-se umas às outras, que a Via do despertar deve se realizar como
presença" (ORIMO, 2005b, p. 222).
Na
tradição zen, a relação entre mestre e discípulo, tão bem expressa nesse
episódio da flor de Udumbara, vem situada num plano de grande importância. A
experiência direta, de coração a coração, vem afirmada como valor substantivo,
o que não significa a relativização ou desprezo das letras dos textos sagrados
(TOLLINI, 2001, p. 156). De modo particular, a espiritualidade de um mestre
como Dôgen sempre esteve enraizada no Sutra do Lótus como em outros textos
sagrados, que também transmitiam com vigor o espírito do Buda.
O budismo
teve boa recepção na China em razão de sua semelhança com a doutrina do
filósofo Lao-Tsé, que também como Buda, sinalizava a centralidade do vazio e a
impermanência. Mas era um budismo essencialmente teórico, e contra ele
posicionou-se Bodidarma, "que
quis estabelecer na China o genuíno Budismo de Gautama, todo ele vivência e
ação. Como recomendava a prática da meditação dhyana (Ch´an em chinês, Zen em
japonês) como método para o desenvolvimento do prajna, o conhecimento
intuitivo, seus seguidores passaram a ser conhecidos como adeptos de uma escola
Zen, embora Bodidarma não pensasse em fundar nenhuma seita ou escola, e sim
transmitir o verdadeiro espírito do Budismo" (GONÇALVES, 1976, p. 24).
Bodidarma
foi também um "asceta do zazen ", a meditação sentada. Quando ele se
estabeleceu no templo de Shaolin, no monte Sung, passava grande parte do tempo
sentado em meditação, com o olhar voltado para a parede (pi-kuan). E assim
ocorreu por nove anos. Era grande o destaque que concedia à meditação
silenciosa, em lugar da leitura ou meditação dos sutras ou de outros
comentários escritos (KASULIS, 2007, p. 24).
Os
primeiros mosteiros zen surgiram na época do quinto patriarca, Hung-Jen
(601-674). Visualizavam-se a partir desse período dois traços distintivos da
espiritualidade que se firmava: a comunidade monástica e a harmonia com a
natureza. Com o sexto patriarca, Hui-Neng (638-713), consolida-se o principal
ramo do zen-budismo, o zen do sul, que depois será subdividido em várias
escolas, como já assinalado. É ao sexto patriarca que "toda a tradição zen
do presente remete sua origem" (YAMPOLSKY, 2007a, p. 3).
Dentre os
grandes mestres da tradição Ch´an encontra-se o monge Ma-tsu Tao-i ( Baso
Doitsu - 709-788), da dinastia T´ang, ao qual vem associada a escola Hung-chou.
Com ele se processa uma mudança importante no foco da prática da meditação. Não
que ele tenha deslocado o seu valor, mas possibilitou um "retorno" da
experiência contemplativa para a realidade cotidiana. A grande máxima passa a
ser: "Essa mente mesma é Buda". Isso significa, em outros termos, que
"a meta mais remota e transcendental é o que está, paradoxalmente, mais
próximo de nós" (WRIGHT, 2007, p. 35). A iluminação, entendida como busca
da natureza búdica, é vista então como uma retomada ou encontro com a natureza
mais profunda do sujeito, sua natureza original. O praticante vem, assim,
orientado a sintonizar-se com o presente, com o que já se encontra aqui, o
corriqueiro, que na perspectiva anterior era objeto de superação. O que a
escola Hung-chou enfatiza é essa "reorientação da atenção para o
´corriqueiro' e o ´cotidiano'". O cotidiano, ou a mente do cotidiano,
firma-se como o caminho . Nesse sentido, "a meditação não precisa ser uma
atividade especial que quer seu próprio tempo, ambiente e postura. Todo momento
da vida, estando-se ´sentado, de pé, ou deitado', deve ser visto como uma
manifestação da natureza búdica" (WRIGHT, 2007, p. 35-36).
Ao adentrar-se
no Japão, por volta do século XII (período Kamakura), o budismo zen adquire
características próprias. Sua introdução ocorreu por meio de duas escolas
rivais, a partir da China: as escolas Rinzai e Soto. Como nomes conhecidos na
tradição Rinzai, podem ser mencionados Eisai (1141-1215) e Myosen (1184-1225).
Na tradição Soto firma-se com destaque o nome de Dôgen (1200-1253), que
introduziu essa escola no Japão. Enquanto a tradição Rinzai centrava-se na
prática dos koans, em que se exigia dinâmica atividade mental, a tradição Soto
concentrava-se na prática do zazen, voltada para um processo de
"iluminação gradual" (IZUTSU, 2009, p. 139-144) .
Dôgen
destaca-se como uma das mais importantes figuras criativas da humanidade. Foi
um grande reformador e revitalizador da tradição budista japonesa na virada do
século XIII. Foi ele o introdutor da tradição Soto Zen no Japão. Foi sobretudo
a partir da década de 1930 que ocorreu uma recepção mais ampla de seu
pensamento, quando passa a ser percebido como "um guia espiritual da
humanidade" . Sua inserção mais viva no âmbito dos estudos do budismo é
firmada no período do pós-guerra, ou seja, a partir de 1945, quando se
intensificam os esforços de incorporar Dôgen "no contexto histórico,
social e cultural no qual se formou o seu pensamento" (JIM KIM, 2010, p.
21-23).
Grande
parte dos trabalhos de recuperação do pensamento de Dôgen, em particular de sua
obra capital, o Shôbôgenzô, foram realizados no Oriente. Não só estudos
importantes visando a compreensão dessa obra, como também de outros escritos do
mestre da tradição Soto. Ocorreram investigações não apenas nos âmbitos
filosófico-religiosos, mas também linguístico, textual e literário. Não houve,
infelizmente, um semelhante acompanhamento reflexivo sobre a obra de Dôgen no
Ocidente. Os trabalhos de difusão do budismo zen no Ocidente foram favorecidos
pela reflexão de D.T. Suzuki, com base sobretudo no Zen Rinzai (JIM KIM, 2010,
p. 24).
Muitas
são as dificuldades de acesso ao complexo pensamento de Dôgen. Não só a sua
reflexão, como também sua linguagem "são extremamente difíceis e sutis, e
entretanto irresistivelmente intrigantes" (JIM KIM, 2010, p. 24). O
contato com sua obra abre inusitados horizontes para a reflexão e uma visada
inovadora para a compreensão efetiva e aprofundada do zen budismo. Daí a
escolha de seu itinerário como base para o presente ensaio.
Dôgen
nasce em janeiro de 1200 numa família aristocrática. Sua vida foi marcada pela
experiência precoce da impermanência, tendo perdido o seu pai em 1202 e sua mãe
um pouco depois, quando tinha apenas sete anos. Apesar das dificuldades
decorrentes dessas perdas, conseguiu ter uma formação linguística e cultural
refinada, e isso pode ser observado na sua excelência poética. Não se deixou
abater pelo pessimismo, que também rondava sua época, mas reforçou a dinâmica
de seu caminho com substantiva vitalidade. Ele dizia: "Com uma vida assim
transitória, não deveria haver outro empenho senão a Via" (JIM KIM, 2010,
p. 40).
Depois da
perda de seus pais, Dôgen passou a ser criado pelo irmão mais jovem de sua mãe,
Fujiwara Moroie, que previa para o menino uma carreira aristocrática brilhante.
O destino, porém, reservou-lhe uma sorte diversa, tendo decidido pelo caminho
monacal. Entra no noviciado em 1213, com a idade de 13 anos, em ofício dirigido
por Kôen, então abade do templo Enryakuji, no monte Hiei. Inicia-se ali o seu
estudo sistemático dos sutras budistas. No curso de seus estudos deparou-se com
uma interrogação que o acompanhará por muitos anos: Se todos os seres humanos
são dotados da natureza de Buda desde o nascimento, por que então os budistas
de todos os tempos buscam incessantemente a iluminação, empenhando-se na
prática espiritual? Trata-se de uma interrogação que ninguém no monte Hiei
conseguiu fornecer uma resposta satisfatória (JIM KIM, 2010, p. 40-41).
Segue o
seu caminho com essa delicada questão na bagagem. Passa pelo templo de Onjôji,
na província de Omi, sob os cuidados do mestre Koin (1145-1216). Este o envia
ao templo de Kenninji, em Kyoto, tornando-se então aluno de Myozen (1184-1225),
discípulo de Eisai, que tinha introduzido o Zen Rinzai no Japão.
Dôgen relata no Bendôwa esse encontro:
Dôgen relata no Bendôwa esse encontro:
"Depois
de ter despertado o desejo de iluminação e de busca da Via, vaguei por este
país buscando o conhecimento. Foi quando então encontrei o mestre Myozen no
templo Kenninji. Passaram-se rapidamente nove anos e estando com o mestre nesse
período aprendi diversas coisas da tradição Rinzai. Myozen era o principal
discípulo do fundador (do Rinzai) Eisai e era o único a ter recebido a correta
transmissão suprema do budismo" (DÔGEN, 2001a, p. 125).
É no
encontro com Myozen que Dôgen toma ciência do budismo zen, e reconhecia que
nenhum outro mestre se igualava a ele na dinâmica de transmissão correta do
budismo. Mas mesmo a presença desse mestre não respondeu ao sentimento de
insatisfação que o acompanhava desde os tempos de sua estadia no monte Hiei.
Identificava limites no ensinamento dos mestres japoneses, que a seu ver não
conseguiam penetrar a "compreensão intelectual da doutrina". Não
logravam transmitir a seus discípulos senão "palavras e letras", ou
"nomes e sons". Dôgen ansiava por algo ainda mais profundo. Decidiu
então empreender nova aventura em viagem à China, para buscar conhecimento
entre os grandes mestres fundadores. Entendia que ali poderia encontrar o
"melhor do budismo". Assinalava que seria melhor não estudar o
budismo na ausência de um verdadeiro mestre (JIM KIM, 2010, p. 45).
Em 1223,
Dôgen parte para a China, em difícil viagem marítima. Junto com ele, o mestre
Myozen. Sua intenção era a de aprofundar os estudos em mosteiros da tradição
zen. Num dos pontos de ancoragem do navio, ocorreu um dos famosos episódios do
encontro de Dôgen com um monge cozinheiro chinês, de 61 anos, que veio ao navio
em busca de shitake japonês, junto aos mercadores a bordo. O singular diálogo
travado entre os dois vem relatado no livro de Dôgen, Instruções a um
cozinheiro zen (Tenzo kyokun), publicado em 1237 (DÔGEN;RÔSHI, 1986, p. 23-25).
Estranhando essa tarefa exercida por um monge em final de carreira, Dôgen
indaga ao cozinheiro se não seria mais pertinente dedicar seu tempo à prática
do zazen ou ao estudo dos koans, em vez de um trabalho duro como o de tenzo. Em
resposta, o velho monge desatou em risos e fez a seguinte observação: "Meu
bom amigo estrangeiro! Tu não compreendes ainda em que consiste a prática, nem
conhece o significado dos caracteres".
Foi uma verdadeira lição para Dôgen, como uma luz que se acendeu em sua consciência, acionando uma compreensão distinta e novidadeira do zen . Pôde perceber que no simples e cotidiano trabalho na cozinha, como tenzo, alguém pode viver plenamente a experiência do zen autêntico, do budadarma. Nessa obra citada, Tenzo Kyokun, escrita mais de uma década depois desse encontro, Dôgen reconhece que o trabalho de cozinheiro na tradição zen só vem exercido por "mestres estáveis na Via", ou por mestres que despertaram em si o espírito do bodhisattva. Ao longo dos séculos, essa nobre tarefa veio exercida por grandes mestres e patriarcas, recorda Dôgen. É um trabalho que toca um dos temas mais fundamentais da tradição zen, ou seja, o espírito de cuidado e atenção. Nada mais importante, relata Dôgen, do que preparar o alimento com aplicação e poder ocupar-se pessoalmente de cada detalhe do preparo das refeições. Diz ele: "Deixe que, dia e noite, todas as coisas entrem e permaneçam em vossa mente. Cuide para que vossa mente e todas as coisas possam agir conjuntamente como um todo". Nada mais sagrado do que essa harmonização da vida com o trabalho. Diz ainda: "Manuseie uma única folha de verdura de modo a que manifeste o corpo do Buda" (DÔGEN;RÔSHI, 1986, p. 19 e 21).
Foi uma verdadeira lição para Dôgen, como uma luz que se acendeu em sua consciência, acionando uma compreensão distinta e novidadeira do zen . Pôde perceber que no simples e cotidiano trabalho na cozinha, como tenzo, alguém pode viver plenamente a experiência do zen autêntico, do budadarma. Nessa obra citada, Tenzo Kyokun, escrita mais de uma década depois desse encontro, Dôgen reconhece que o trabalho de cozinheiro na tradição zen só vem exercido por "mestres estáveis na Via", ou por mestres que despertaram em si o espírito do bodhisattva. Ao longo dos séculos, essa nobre tarefa veio exercida por grandes mestres e patriarcas, recorda Dôgen. É um trabalho que toca um dos temas mais fundamentais da tradição zen, ou seja, o espírito de cuidado e atenção. Nada mais importante, relata Dôgen, do que preparar o alimento com aplicação e poder ocupar-se pessoalmente de cada detalhe do preparo das refeições. Diz ele: "Deixe que, dia e noite, todas as coisas entrem e permaneçam em vossa mente. Cuide para que vossa mente e todas as coisas possam agir conjuntamente como um todo". Nada mais sagrado do que essa harmonização da vida com o trabalho. Diz ainda: "Manuseie uma única folha de verdura de modo a que manifeste o corpo do Buda" (DÔGEN;RÔSHI, 1986, p. 19 e 21).
Na China,
Dôgen visitou vários mosteiros junto com o mestre Myozen. Na ocasião o budismo
chinês vivia uma situação de dificuldade e declínio. Eram múltiplas as causas
dessa situação, entre as quais a degeneração moral da comunidade monástica em
razão da venda pelo governo de certificados monásticos e títulos honoríficos
para fazer frente à crise financeira. Nesse contexto desfavorável mestres zen
passaram a se envolver na política e os mosteiros dessa tradição tornaram-se
centros de vida social e política. Dôgen expressa seu descontentamento com tudo
isso, e reage contra o empobrecimento daqueles que se proclamam descendentes do
Buda e o enfraquecimento do ensinamento da Via (JIM KIM, 2010, p. 49). As
crítica de Dôgen voltavam-se não apenas à situação geral do budismo, mas também
à ordem Rinzai, muito popular na época.
As
viagens realizadas por Dôgen pela China favoreceram a ele um bom conhecimento
do budismo chinês, mas não lhe possibilitaram o acesso a um verdadeiro mestre.
Marcado por certa desilusão, resolveu voltar ao Japão. Decide fazer uma última
visita ao monte T´ien-t´ung, onde estava adoentado o seu mestre Myozen. No
templo de Chiug-shan Wan-shoussu, Dôgen encontra um velho monge que acende nova
luz em seu caminho ao falar de um famoso mestre, Ju-Ching (1163-1228) , que
assumia a função de abade no mosteiro de Ching-te-ssu, no monte T´ien-t´ung.
Foi a senha que precisava para realizar um encontro que marcou decisivamente a
sua vida. O contato com Ju-Ching aconteceu no quinto mês de 1225. O acolhimento
foi caloroso, e entre os dois ocorreu o desvelamento do mistério do Dharma.
O mestre
Ju-ching reagia às divisões sectárias do budismo e aspirava a um budismo aberto
e universalizante. Não gostava nem mesmo de nomear sua prática como sendo zen.
O objetivo essencial de seu trabalho era aprofundar o Dharma. Ao tratar da
personalidade desse mestre, Dôgen assinala o seu traço dinâmico e carismático e
sua intransigente defesa do só-zazen, entendido como caminho essencial do
budismo. Para Ju-Ching, segundo a descrição tecida por Dôgen a seu respeito, o
budismo "não devia reverenciar nada daquilo que sinalizasse glória e
poderes mundanos; devia, sim, contentar-se com a virtude da pobreza e do viver
na profunda paz das montanhas. O Dharma deveria ser buscado para o bem do
Dharma" (JIM KIM, 2010, p. 56).
Momento
decisivo na experiência de aprendizado de Dôgen sob a guia de Ju-Ching ocorreu
em 1225. No decorrer de uma prática de zazen, na primeira manha de um retiro
intensivo (Geango), um monge que estava ao seu lado adormeceu. Em advertência a
tal acontecimento inesperado, Ju-Ching bradou com firmeza em sua direção:
"No zazen é imperativo abandonar o corpo e a mente. Como pode podes ceder
ao sono?". O toque dado por Ju-Ching acabou fazendo efeito em Dôgen, que
sentiu todo o seu ser estremecer, provocando a experiência de uma grande
alegria em seu coração. Na mesma manhã, nos aposentos de Ju-Ching, Dôgen
ofereceu incenso e se prostrou diante da imagem de Buda. Admirado pela atitude
de Dôgen, o mestre Ju-Ching perguntou-lhe sobre a razão de tal procedimento.
Recebeu como resposta uma frase reveladora: "O meu corpo e a minha mente
foram abandonados!". Uma expressão que se tornou célebre no livro Genjo
koan do Shôbôgenzô: shinjin datsuraku (deixar cair o corpo e a mente) . Diante
da exuberância da resposta de Dôgen, e sua certeira percepção, Ju-Ching
reconheceu a autenticidade de sua iluminação. No nono mês de 1225, ele conferiu
a Dôgen, um monge japonês, o certificado oficial da sucessão patriarcal da
linha Chen-hsieh da Ordem Tsao-tung, uma novidade na história do budismo chinês
(JIM KIM, 2010, p. 59).
Dôgen,
finalmente, conseguia a resposta à questão que tanto lhe angustiara durante
muitos anos, desde os tempos de sua presença no monte Hiei. Na certeira
percepção desse "deixar cair corpo e mente" estava a chave de acesso
à compreensão da natureza búdica. Através da prática do só-zazen, do
simplesmente sentar (shikantaza), consegue, finalmente, acessar a perspectiva
de uma existência não dualística. E este "abandonar corpo e mente"
não anulava, em hipótese alguma, a existência histórica e social, mas a
acionava numa perspectiva nova e distinta, de modo a facultar a
"encarnação auto-criativa e auto-expressiva da natureza-do-Buda" (JIM
KIM, 2010, p. 59).
Durante
dois intensos anos, entre 1225 e 1227, os dois mestres viveram uma rica
experiência de prática e ensino comuns na busca da verdadeira compreensão do
Dharma. Em 1227, Dôgen expressou ao seu mestre o desejo de retornar ao Japão,
recebendo na ocasião o hábito sacerdotal, que é o documento genealógico da
sucessão patriarcal.
O mestre
Dôgen retornou ao Japão com as "mãos esvaziadas" de sutras, imagens
ou documentos. Trazia para seus conterrâneos apenas o seu corpo, a sua mente e
sua existência, agora libertados das amarras do ego e radicalmente
transformados. Esse retorno ocorreu, provavelmente, no outono de 1227. Ele logo
assume o templo Kenninji, depois dos anos de ausência. Nesse mesmo ano escreve
o breve texto do Fukan zazengi, com os conselhos práticos em torno do zazen. É
um livro que não faz parte do Shôbôgenzô, mas que expressa um traço importante
do ensinamento de Dôgen, sendo a primeira descrição do zazen realizada por um
autor japonês (TOLLINI, 2001, p. 47).
O tempo
de permanência de Dôgen em Kenninji foi de três anos. Depois deslocou-se para o
templo de An´yoin em Fukakusa, onde escreveu um dos clássicos livros do
Shôbôgenzô, o Bendôwa, que é na verdade um discurso sobre a prática da Via.
Trata-se de uma obra que desvela os traços fundamentais do ensinamento de
Dôgen. Com esses dois primeiros escritos, Dôgen lança as bases de sua concepção
religiosa e filosófica.
Com o
crescimento de seus discípulos, Dôgen transfere-se para o templo de
Kosho-horinji – uma ampliação do original Kannon-dorin -, onde permanece por
dez anos (1233-1243). Foi, talvez, o período mais criativo para ele, compondo
simplesmente quarenta e quatro capítulos do Shôbôgenzô, entre os quais alguns
de grande importância como o Genjo-koan e o Bussho. Foi também ali que acolheu
Koun Ejo (1198-1280) como seu discípulo. Entre os dois nasceu uma forte amizade,
que os manteve ligados por quase vinte anos, até a morte de Dôgen . Os dois
trabalharam juntos para a afirmação do Soto Zen no Japão.
O templo
de Kosho-horinji foi um espaço aberto à comunidade, traduzindo uma preocupação
sempre presente em Dôgen, de fazer do budismo uma "religião do povo".
Num de seus breves e belos livros, Shôji, que trata dos nascimentos e mortes,
Dôgen expressa sua ideia da compaixão ilimitada. Assinala que a estrada que
conduz ao despertar passa necessariamente por uma "profunda compaixão por
todos os seres". Para que isso ocorra é necessário um coração liberado do
pequeno eu egoísta, de forma a poder acolher e ressoar com todos os seres do
universo (DÔGEN, 2007, p. 353).
A
itinerância de Dôgen continuou pelos templos de Kippoji e depois Daibutsuji,
onde se estabeleceu no sétimo mês de 1244. Em junho de 1246, mudou o nome do
templo para Eiheiji, que significa paz eterna. Consegue, então, realizar o seu
sonho de "fundar uma comunidade monástica ideal segundo os ditames de
Po-chang Huai-hai (720-814), no coração das montanhas e dos cursos de
água" (JIM KIM, 2010, p. 71). Nesse templo escreveu oito capítulos do
Shôbôgenzô, mas dedicou-se sobretudo à formulação dos preceitos e regras de
consolidação da vida monástica. O mosteiro de Eiheiji tornou-se um importante
ponto de referência como comunidade educativa e religiosa.
A saúde
de Dôgen começou a agravar-se a partir de 1250, limitando suas atividades
monásticas. Escreve ainda um derradeiro capítulo do Shôbôgenzô, em 1253 – o
Hachi-dainingaku -, expressando uma última mensagem a seus discípulos, já
prevendo a proximidade de sua morte. Ele nomeia Ejo como seu sucessor em 1253 e
no oitavo mês do mesmo ano vem a falecer, junto a seus discípulos, em postura
de zazen.
Dôgen e
os caminhos do Dharma
Um dos
traços fundamentais do ensinamento de Dôgen está relacionado ao jijuyu zanmai,
ou seja, à capacidade intrínseca do ser humano para a iluminação. Na visão do
mestre japonês, o Dharma está presente no íntimo de cada pessoa, mas sua vinda
à luz depende de um exercício de prática. Assinala no Bendôwa que um
"método misterioso" foi transmitido de Buda a Buda, que é aquele do
sentar-se em zazen. Não há outro "portal" mais propício para a
iluminação: trata-se "da verdadeira Via para se alcançar a iluminação"
(DÔGEN, 2001a, p. 123-124 e 127) .
Na visão
de Dôgen, não há como separar a prática da iluminação. O acesso à iluminação
não se dá tanto por meio especulativo, mas sobretudo por intermédio de uma ação
que se desdobra do fundo de si mesmo. Há em verdade uma unidade de prática e
iluminação (shusho ichinyo) . O caminho dessa prática, quando orientado por um
bom mestre, leva ao horizonte da iluminação. O simplesmente sentar-se,
retamente orientado, favorece a percepção do "selo do Buda", e o
olhar se desprende para captar em todas as coisas do universo uma presença
iluminada (DÔGEN, 2001a, p. 127).
Os traços
da prática do zazen foram particularmente desenvolvidos em três obras de Dôgen:
Zazengi, Fukan zazengi e Zazenshin. Na primeira obra, Zazengi, Dôgen assinala
que "a prática do zen é o zazen". Nesse livro, Dôgen aborda as
condições propícias para a realização dessa prática: as condições do lugar e o
estado mental desejado para o seu exercício. É necessário deixar-se habitar
pelo "sem-pensamento" , rompendo com todos os laços ou vínculos que
prejudiquem a concentração do praticante. Não há que ter objetivos, nem mesmo o
de se tornar Buda. O zazen deve ser assumido em "alta consideração"
(DÔGEN, 2001b, p. 43-44). Há que deixar "cair" corpo e mente,
livrando-se de todos condicionamentos e "simplesmente sentar", sem
nada esperar. No Fukan zazengi, que é o primeiro texto escrito por Dôgen
(1227), ele aborda os princípios do zazen. Sugere que o praticante volte-se
para o interior, mediante a prática do zazen, buscando o fundamento originário
do caminho, ou da Via. Esse fundamento, ao contrário da opinião corrente em
certa tradição budista, pervade todas as coisas. O samsara e o nirvana não são
dimensões separadas, mas interpenetradas. O nirvana acontece no processo mesmo
do samsara . E este "rosto originário" do Dharma não emerge senão
quando o corpo e a mente deixam-se cair, e isso ocorre naturalmente, com o
desdobramento da prática. Os aspectos formais e físicos do zazen são
desenvolvidos por Dôgen em sua obra Zasenshin. Ele retoma ali o tema essencial
do exercício do "não-pensamento" na prática do zazen: o desafio de
"pensar o não-pensamento". Na prática mesma do zazen se dá a dinâmica
da iluminação, não devendo o praticante deixar-se levar por nenhum desejo, nem
mesmo o de tornar-se Buda . Trata-se de algo tão impossível como fazer de uma
telha um espelho mediante seu polimento com uma pedra. Para Dôgen, há que
ultrapassar o "fato imediato" que se apresenta aos olhos e saber
buscar mais fundo, visando captar o mistério das coisas. Isso é para ele o
significado mais largo do estudo do budismo. Seguindo a trilha aberta pelo
mestre Nangaku Daie (677-744), Dôgen sinaliza a importância do exercício de
gratuidade no zazen. Não há por que se preocupar com as "formas do sentar-se",
mas voltar-se para o seu "princípio". Para tanto, a disposição
essencial é a de "deixar cair mente e corpo" (DÔGEN, 2001d, p.
60-70).
Essa
expressão "deixar cair o próprio corpo/mente" (shinjin datsuraku),
tão citada por Dôgen, tornou-se muito famosa, traduzindo de forma límpida e
sintética a essência de sua reflexão sobre o budismo. A forma mais precisa onde
ela aparece na obra deste autor é no Genjo Koan: "Aprender o budismo é
aprender a si mesmo; aprender a si mesmo e esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se
de si mesmo é ser despertado para a realidade. Despertar-se para a realidade é
deixar cair o próprio corpo/mente e o corpo/mente dos outros" (DÔGEN,
2001e, p. 180) .
A
dinâmica desse precioso aprendizado envolve a presença de um bom mestre, que possibilita
abrir o caminho da transmissão correta. É um "aprendizado de
desaprender", como tão bem mostrou Fernando Pessoa em seu Guardador de
rebanhos. Há que romper a percepção da realidade que se funda na perspectiva de
um "eu permanente". Não há o que fazer com a ideia de um "eu
permanente". Como sublinha Dôgen, "a realidade não se baseia sobre o
nosso eu" (DÔGEN, 2001e, p. 180). O exercício do zazen faculta a
emergência de um si mesmo que nasce a partir da morte de um eu egocentrado.
Esse eu "deixa-se cair" para fazer emergir o verdadeiro si (jiko).
Trata-se do si real ou universal, habitado pela realidade da vida. O passo
essencial da prática do zazen é facultar a emergência deste "si" que
inclui toda coisa (UCHIYAMA, 2006, p. 38-39) .
Tem razão
Taisen Deshimaru quando assinala que o zazen favorece um "alargamento da
consciência e o desenvolvimento da intuição". Não é uma prática que
desloca o sujeito da vida e da história, mas provoca, antes, um adentramento
singular em sua concretude. É uma técnica que possibilita atenção permanente,
concentração viva "sobre cada instante da vida" (DESHIMARU, 1981, p.
14 e 30).
Há que
salientar, seguindo as pistas abertas por Dôgen, que a realização da Via ocorre
também por caminhos inusitados, que não se restringem à prática específica do
zazen. É uma realização que se estende para todo o universo, pois sua luz emana
de toda parte. Está presente no golpear e sibilo do vento e no misterioso som
de um sino. Todo fenômeno é para Dôgen portador da possibilidade de iluminação
(DÔGEN, 2001a, p. 129-139).
Uma espiritualidade do cotidiano
Uma espiritualidade do cotidiano
Toda a
espiritualidade zen acentua com vigor o valor e o significado da experiência da
vida. Mesmo reconhecendo a relevância imprescindível da prática do zazen, a
base essencial onde habita o múnus do Dharma é a vida mesma, em toda a sua
tessitura. Em rica reflexão de Uchiyama Roshi, Como cozinhar a vossa vida, ele
aborda o tema do "apaixonar-se pela vida". Reconhece que na tradição
budista Mahayana a vida é o que há de "mais essencial" (DÔGEN; ROSHI,
1986, p. 67).
Dôgen
sublinha a todo tempo a importância do cuidado, delicadeza e atenção para com o
presente em cada um de seus instantes. Há para ele uma relação de proximidade
entre a natureza e o despertar. Os diversos capítulos ou fascículos do
Shôbôgenzô, bem como os poemas recolhidos no Sanshodoei , expressam esse
"profundo amor" do mestre zen pela natureza. Alguns títulos da grande
obra de Dôgen expressam essa presença: Tsuki (a lua), Shunju (primavera e
outono), Katto (cipó), Hakujushi (cipreste), baika (flor de pêssego), udonge (a
flor de udumbara) keisei sanshokoku (a voz dos vales, as formas-cores das
montanhas), sansuikyo (montanhas e rios como sutra).
Há todo
um rico aprendizado favorecido na tradição zen de desocultar a presença do
invisível, ou do mistério, no âmbito mesmo do visível e poder captar a
ressonância essencial do universo. Mas quando, por exemplo, Dôgen fala em
natureza, a sua percepção é distinta daquela usual no Ocidente. O termo vem
carregado de uma clara conotação religiosa. Não há como deslocar a compreensão
de natureza da experiência do despertar. O termo natureza vem desvelado como
"a realidade concreta percebida a partir do despertar, o mundo mesmo do
despertar" (FAURE, 1987, p. 23). Sob essa perspectiva, Dôgen pode cantar
num de seus poemas do Sanshodoei: "O eco dos vales e o grito dos símios
nas alturas não fazem senão recitar sem cessar as Escrituras" (FAURE, 1987,
p. 25) . Na verdade, toda a realidade natural, envolvendo as montanhas, rios e
toda a imensidão da terra constituem "o oceano da natureza de Buda".
Ou ainda, como assinalado no livro Hotsumujôshin, em cada poeira "existem
milhares de escrituras santas e um número incomensurável de despertares"
(DÔGEN, 2005a, p. 173).
Essa
percepção profunda da realidade natural pressupõe, porém, um trabalho da
interioridade, um exercício de aperfeiçoamento do olhar. Não são todos que
conseguem captar a ressonância do universo, mas aqueles que passaram por uma
transformação interior, rompendo com a perspectiva egoica e possessiva,
deixando-se envolver pela "experiência direta", que antecede toda
distinção entre sujeito e objeto (FAURE, 1987, p. 26).
Em
esclarecedora obra sobre a filosofia do budismo zen, Toshihiko Izutsu aborda
esta questão do "Ver" na tradição zen. Com o recurso da visão
ordinária, que se limita ao fato imediato, nem sempre se consegue captar o
"outro lado" das coisas, ou o seu mistério implícito. É quando o
olhar se perde nas coisas sem, porém, reconhece-las. Nem sempre a visão daquilo
que está diante dos olhos favorece a percepção de sua profundidade. Como
assinala Izutsu, "para
poder ver numa só flor uma manifestação da unidade metafísica de todas as
coisas, não só de todos os denominados objetos mas também do sujeito
observador, o ego empírico deve ter sofrido uma transformação total, uma
completa anulação de si mesmo – a morte de seu próprio ´eu' e seu renascer numa
dimensão de consciência totalmente distinta" (IZUTSU, 2009, p. 20-21).
Verifica-se
que na tradição zen não existe nada senão a realidade do mundo fenomênico. Não
se fala ali de uma ordem de coisas transcendental, que se destaca do espaço e
do tempo. O que há é esse mundo sensível e concreto, na sua espessura vital. O
pensamento de Dôgen reflete essa dedicada atenção ao fluxo da existência
cotidiana, sem que ocorra um acento numa transcendência específica. Há algo de
"singularmente profano" e "absolutamente cotidiano" no zen
por ele apresentado. Relata-se que Bodidarma, ao ser indagado pelo imperador
Wu, sobre o traço de santidade presente no ensinamento do budismo, respondeu
com tranquilidade: "Uma imensa vacuidade, e nada o que fazer com a
santidade" (COOK, 1981, p. 59). Em ilustrativo capítulo do Shôbôgenzô, dedicado
ao tema da vida cotidiana (Kajo), Dôgen assinala que os grandes mestres e
patriarcas do zen simplesmente "comem arroz e bebem chá". Não há nada
de muito "nobre" na vida desses grandes homens: "O chá ordinário
e as refeições frugais de sua vida cotidiana constituem os pensamentos daqueles
que despertaram e as palavras dos patriarcas" (DÔGEN, 2007, p. 306).
O que o
zen, porém, pontualiza é que o mundo fenomênico não se reduz à trama das coisas
sensíveis que se apresentam ao ego empírico ordinário. Ele pode estar
vitalizado por uma particular espécie de poder dinâmico capaz de redimensionar
o ver (IZUTSU, 2009, p. 33). Enquanto o olhar ordinário, essencialista, só
consegue ver a montanha como montanha e o rio como rio, o olhar zen passou pela
experiência do "abismo do Nada", pela experiência fundamental do
desapego. Para além da superfície fenomênica, ele consegue, agora dinamizado
por distinta experiência, captar a mesma montanha sob nova perspectiva: "A
montanha é de novo montanha", ou ainda: "A montanha é simplesmente
montanha". O olhar vem revigorado a partir de seu "renascimento desde
o próprio abismo do Nada", sinalizando a presença de um indivíduo que foi
completamente transformado na sua estruturação interna. Trata-se, segundo Dôgen,
de um olhar que passou por uma atividade específica (gyoji), pontuada por um
modo de conceber e viver a própria vida cotidiana segundo a espiritualidade
zen.
Um dito
tradicional do mestre zen Ma-tsu (709-788), muito repetido por Suzuki, indica
que o "zen é a consciência cotidiana". Todas as coisas "cantam a
verdade", também sinaliza Dôgen. Não há, portanto, que sair do mundo para
gozar da experiência espiritual. Se alguém quer, de fato, penetrar a verdade do
zen, indica Suzuki, com base em Pen-hsien, deve fazê-lo quando está de pé ou
andando, dormindo ou sentado, na palavra ou no silêncio e em meio aos afazeres
do trabalho cotidiano (SUZUKI, 1993, p. 92-93).
Acolher o
cotidiano na sua elementar maravilha é dos mais importantes desafios
apresentados pela tradição zen, e por Dôgen em particular (TOLLINI, 2012, p.
158-160). A percepção da novidade das coisas em cada singular momento ou
instante é favorecida pelo olhar que passou por processo dinâmico de mudança. É
um olhar capaz de captar a essencial gratuidade (mushotoku) das coisas. O
mestre Kodo Sawaki (1880-1965) dizia: "Os homens acumulam conhecimentos,
mas eu penso que o fim último seja poder sentir o som dos vales e olhar as
cores da montanha" (FAZION, 2003, p. 101). A autêntica meditação não se dá
no distanciamento do instante presente, mas no adentramento de sua espessura.
Ela envolve uma atenção vigilante aos pequenos detalhes do cotidiano, com a
mente aberta e desimpedida. O zazen não se dá somente num tempo específico e
num lugar privilegiado, mas acontece em todo momento, iniciando-se com o abrir
dos olhos pela manhã e finalizando com o seu fechamento à noite, de modo que
todas as atividades realizadas no dia sejam tradução viva de uma prática (COOK,
1981, p. 25).
Em outro
fascículo de seu Shôbôgenzô, Zenki, Dôgen aborda o precioso tema do instante.
Para ele "cada instante é um instante de plenitude". Questiona
duramente nessa obra aqueles que ensinam que o alcance do nirvana se dá com a
saída do mundo ordinário. Sublinha enfaticamente que os dois mundos, do nirvana
e do samsara necessitam-se mutuamente. Na verdade, assinala que o nirvana se
opera no samsara (DÔGEN, 2011, p. 64-67). Na visão de Dôgen, "o
acontecimento por excelência é a vida", a vida que se vive em cada um de
seus instantes, e por meio da qual todos podem celebrar a alegria de estar aí.
O despertar espiritual, assinala o mestre zen, não é nada mais que a tomada
viva de consciência deste instante presente, nas suas misteriosas malhas de
enigma, surpresa e gratuidade. Só há plena consciência, adverte Dôgen, quando a
consciência consegue abraçar todas as coisas em cada instante (DÔGEN, 2011, p.
75-76).
O
organismo privilegiado para acolher essa pulsação de vida que se acomoda em
cada instante da vida cotidiana é, para Dôgen, o coração (shin – kokoro). Mas
para que ele possa "ressoar com a multidão dos seres do universo" ,
necessita de esvaziamento, de destacamento dos traços do "pequeno eu"
que impedem o abraço universal da acolhida e da compaixão. É o coração liberto
que coloca o ser humano em disponibilização para ouvir com alegria o
"canto das coisas", ou na expressão de Dôgen, o "sentimento e a
emoção das flores" (DÔGEN, 2007, p. 348 e 353).
Conclusão
Em sua
obra de introdução ao Zen Budismo, Suzuki aborda a questão de ser ou não o Budismo Zen um misticismo. Com o humor típico dos grandes mestres, ele indica
que o zen "é um misticismo a seu próprio modo". Sinaliza que ele
"é místico no sentido de que o Sol brilha" ou "que uma Flor
desabrocha". Reconhece que o traço de religiosidade habita a presença de uma
camélia em flor, em mesma proporção que sua evidência no ato explicitamente
religioso de se prosternar diante dos deuses ou outras atividades rituais
(SUZUKI, 1999, p. 60 e 65). Trata-se, em verdade, de uma espiritualidade
fundada na experiência mais singela do cotidiano. Há muito de humano,
demasiadamente humano, na espiritualidade Zen. É o que esse artigo buscou
sublinhar de várias formas. A tradição Zen Budista vive a espiritualidade no
tempo, sem deslocar a experiência da iluminação para um além incognoscível, ou
um nirvana impalpável. É neste "tumultuado" mundo do samsara que se
dá a oportunidade de iluminação. É por isso, como tão bem mostrou Francis Cook,
que o budismo convoca a todos para uma atitude de observação da vida, com
delicadeza, clareza e atenção, visando encontrar uma liberdade única e um bem
estar partilhado, sempre nesse espaço dado e nas condições precisas que
constituem o edifício da vida humana (COOK, 1981, p. 56).