5. Considerações sobre o Nível de Desenvolvimento Humano (Falante) e Ensinamentos Extraídos:
Conforme explicações contidas no item Considerações Iniciais, o nível de desenvolvimento humano se constitui, em terminologia acadêmica, no meio antrópico. Assim, com vistas a facilitar a percepção do exposto, a abordagem considerará os seus três componentes: o social, o econômico e o cultural.
Nesse sentido, é preciso perceber que esse item fará a ”confrontação” do ser humano consigo mesmo, o que significa dizer que não haverá, evidentemente, a necessidade de fazer paralelos (analogias) entre esse elemento ambiental (o homem) e a humanidade, tal como se procedeu nos itens anteriores (mineral, vegetal e animal). Portanto, a extração de ensinamentos se dará de forma direta, ao serem abordados os três componentes explicitados no parágrafo anterior.
Social:
Inicialmente, é preciso resgatar algo já tratado no item referente ao nível de desenvolvimento animado, isto é, o fato de que a nossa espécie pertence à Ordem Primates, que se caracteriza por possuir elementos com comportamento gregário. Portanto, está na nossa “raiz” biológica (no instinto) esse tipo de comportamento, ou seja, de viver em grupo. Todavia, no ser humano essa capacidade se diferencia de todos os outros animais, haja vista a sua racionalidade. Em outras palavras, ele não age desse modo apenas por instinto, mas também por esse diferencial de ordem cognitiva. É essa particularidade (mescla de instinto e racionalidade) que gera tanta complexidade nas relações humanas.
Sob a perspectiva cabalística, esse comportamento social do ser humano se relaciona claramente com a seguinte mitsvá: amar o próximo como a si mesmo. Isto é, a condição de seres gregários, em que os indivíduos necessitam se ajudar mutuamente para sobreviverem, é a maneira sutil pela qual Deus nos dá a possibilidade de cumprir esse mandamento. Por outro lado, todos sabem quão difícil é honrar esse mandamento, por conta de vivermos num mundo hostil e competitivo. No entanto, é preciso persistir com a prática do altruísmo, a fim de avançarmos espiritualmente, tal como apregoa a Cabalá.
Na prática, esse comportamento social do homem se dá de muitas formas, como por exemplo, entre os membros da família, na escola, no trabalho, em ambientes coletivos (no condomínio, no ônibus, etc.), entre tantas outras possibilidades. Uma das maneiras de organizar didaticamente esse comportamento seria a seguinte: relações formais (envolvem algum tipo de compromisso, como por exemplo, contrato ou outro mecanismo de vinculação das partes, no que poderíamos chamar de negócio) ou informais, sendo as primeiras normalmente pautadas em relacionamentos frios, em que a mente (a razão) assume o comando, enquanto as outras tendem a ser dominadas pelo coração (a emoção).
Quanto aos negócios (guesheft), é preciso refletir sobre um pensamento judaico: “o mais longo dos caminhos é o que leva ao bolso”. O que se quer dizer é que não há meios de se chegar ao bolso (figurativamente à maneira como lidamos com o dinheiro, com os negócios, com os compromissos financeiros etc.) sem fazer uma reflexão sobre a vida e seu sentido. De outra maneira: a relação com o bolso revela quem é a pessoa! Como se pode imaginar, o tema é complexo, já que essa relação com o bolso envolve não só a personalidade (o caráter), mas também a condição financeira da pessoa no momento, da experiência (boa ou má) que ela teve ao se envolver em negócios, entre outras variáveis. Nesses termos, com a finalidade de mostrar como a Cabalá entende essa questão tão importante, na medida em que nos faz pensar sobre a vida e seu sentido, tal como expliquei acima, mencionarei três pontos que entendo fundamentais de serem abordados nesse ensaio. Eles serão considerados aqui (no item que trata do social), mas também poderiam ser contextualizados no próximo, qual seja, no tópico econômico, pois são temas altamente correlacionados. São os seguintes esses três pontos: parnassá (sustento, prosperidade), tsedacá (justiça social) e o roubo não apenas de dinheiro ou de algo que tenha valor monetário (algo físico).
Quanto ao primeiro, a Cabalá orienta que o importante é ter o sustento, que se entende como sagrado. Mais do que isso, entender que o sustento vem de Deus, por conta de nossas boas ações (nessa vida e nas anteriores), ainda que tenhamos sucessos e decepções em termos financeiros, já que não temos controle de tudo. De forma cabalística, poderia ser entendida como a garantia divina (a pessoa percebe e fica convicta disso) de que não vamos perecer, isto é, de que serão atendidas as nossas necessidades básicas e outras que se fizerem necessárias à nossa sobrevivência, desde que nos empenhemos. Assim, a pessoa conhecedora da dimensão espiritual do que estou a tratar, pode perfeitamente entender que ela adquire, naturalmente, confiança (muito mais que simples fé!) em seu Criador (e em si!), pois Ele é sabedor de suas necessidades e de seu mérito. Enfim, tudo virá a seu tempo, caso você seja merecedor. Vale o seguinte arremate: tudo vem Dele, porém caberá a você “correr atrás”, até pela responsabilidade assumida com o livre arbítrio.
Quanto à tsedacá, dada a importância do assunto, ou seja, de fazer justiça social, existem várias mitsvot que se relacionam a ela. Assim, mencionarei quatro, a fim de bem ilustrar o quanto a Torah (e consequentemente a Cabalá) valoriza esse tipo de comportamento: fazer caridade e ajudar o necessitado (para ele ter o que tinha antes, caso tenha se empobrecido); calibrar pesos e medidas de modo honesto; deixar o empregado que trabalha na terra comer do seu fruto; e devolver o penhor para o seu dono, quando ele precisar, retomando-o depois. Portanto, ao praticar justiça social, a pessoa cumpre mandamentos divinos, trazendo-lhe certamente muitos “créditos” em termos de parnassá. Talvez seja simplismo de minha parte, mas quem sabe sirva para muitas pessoas pensarem o seguinte: será que o seu insucesso financeiro, que tem lhe trazido tantos problemas de sustento, não estaria ligado à sua pouca prática de justiça social? Melhor ainda: seu problema de parnassá não seria na verdade de tsedacá?
Em relação ao terceiro ponto, é interessante compreender que o roubo (a subtração de algo do outro) não se restringe apenas a dinheiro ou a objetos que tenham algum valor monetário (por exemplo, um quadro, uma jóia ou um computador). Ele é muito mais abrangente do que as pessoas pensam! Segundo a Cabalá, envolve pelo menos outros quatro tópicos: roubo de tempo, roubo de informação, roubo de prestígio e roubo de expectativa. Darei alguns exemplos sobre eles: fazer uma pessoa esperar mais do que o necessário, tirando dela a possibilidade de tratar de outro assunto (roubo de tempo); sonegar uma informação a alguém que necessita dela para tomar uma decisão (roubo de informação); falar mal de alguém (fofoca, calúnia), de modo a prejudicá-lo em alguma atividade, mesmo que isso seja verdade (roubo de prestígio); e prometer algo que se sabe impossível de ocorrer (roubo de expectativa). Como se pode imaginar, a situação pode se agravar com a sobreposição de um tipo de roubo em outro, de modo que a pessoa poderá ser lesada em vários aspectos, como por exemplo, perdeu tempo em demasia por conta de alguém (roubo de tempo), o que provocou o seu atraso em outro compromisso, ficando, desse modo, com a fama de irresponsável (perda de prestígio).
Enfim, para os propósitos desse ensaio, entendo que nos basta compreender dois pontos, que imagino serem os essenciais: há alta complexidade no processo e se trata de algo natural (espontâneo, por ser de ordem biológica).
Portanto, seriam os seguintes os ensinamentos básicos a serem extraídos nesse contexto:
- Dada a complexidade apontada, é preciso agir com cautela em todo tipo de relacionamento social, haja vista que nem sempre os nossos interesses (entenda-se aqui apenas os defensáveis sob qualquer perspectiva, seja legal, moral ou ética) serão os mesmos do interlocutor. No caso de relacionamentos formais, a problemática quase sempre se relacionará com direitos e deveres das contrapartes, exigindo de nós, então, cuidados para não entrarmos em “fria” e,ou prejudicarmos terceiros. Os informais, particularmente os de ordem sentimental, também necessitarão de toda a nossa ponderação e bom senso, já que podem deixar seqüelas emocionais para o resto da vida, por conta de eventuais ciúmes ou inveja, dentre outros possíveis sentimentos ruins.
- Obviamente, não é aconselhável a pessoa se isolar socialmente, pois isso não é natural, sem contar que lhe proporcionará perda de oportunidades em todos os sentidos (pessoais e profissionais). Assim, é importante que pessoas muito tímidas ou com alto grau de introspecção fiquem atentas, já que esse tipo de comportamento poderá condicionar os outros a terem restrições de convívio para com elas.
Econômico:
Para satisfazer as suas necessidades de bens e serviços, o ser humano implanta e conduz empreendimentos. Parte-se do princípio de que esses empreendimentos deveriam ser economicamente viáveis, ambientalmente corretos, socialmente justos e culturalmente aceitos. Todavia, isso nem sempre se efetiva, na medida em que ocorrem denúncias de trabalho escravo, prática de nepotismo, desvio de recursos por corrupção, entre outras mazelas humanas. Outras causas podem estar relacionadas a projetos mal concebidos, administrados e,ou fiscalizados, normalmente por incompetência, imperícia e,ou negligência.
Sabe-se que muitas dessas “necessidades” são criadas por ações de marketing, que, de forma sutil, conseguem incutir na cabeça das pessoas o consumo de produtos supérfluos e o acúmulo exagerado de artigos diversos. Também é comum o consumo desmedido por puro egoísmo e para se sentir melhor que o próximo, no que se traduz na velha e perigosa vaidade. Enfim, se consome (e se polui) mais do que o necessário, ademais de se incorrer em grave erro, ou seja, privatizar a satisfação (para poucos) e socializar os impactos ambientais negativos (para todos).
Para ilustrar o exposto, bastaria dizer o seguinte: já se provou que, caso se estendesse o nível de consumo de um típico cidadão do Primeiro Mundo para todos os habitantes do planeta, não haveria recurso natural suficiente para tal empreitada. Em outros termos, isso representa algo terrível, pois indica que alguns possuem muito mais do que o necessário, enquanto outros vivem na miséria. Numa linguagem clara, seria o seguinte: existem pobres porque existem ricos e vice-versa! Desse processo e de outros que se fundem, resulta a fome e toda sorte de desigualdades sociais, que são “o prato cheio” para certas pessoas se inclinarem ao mal, na forma de roubos, furtos, seqüestros, entre tantas atrocidades. É evidente que isso não se justifica, mas não há como negar que essas desigualdades sociais impulsionam algumas pessoas para esses atos ilegais.
Nesse ponto, é bom que se esclareça que não se desconhece que os seres humanos são naturalmente desiguais, como por exemplo, quando se nasce em família abastada ou em uma que vive em favela. Enfim, são as desigualdades que, a contragosto, encontramos no mundo e que, se existem, têm certamente o “dedo” de Deus, ainda que a nossa racionalidade não seja capaz de alcançar uma explicação.
No entanto, a Cabalá é clara e elucidativa sobre isso: Deus, na forma da Natureza, tem um Plano Mestre para o mundo, cabendo ao homem executá-lo. Em termos místicos, significa que essas desigualdades (originadas pelo egoísmo) precisam ser corrigidas pelo próprio homem para que se tenha um mundo melhor (entenda-se altruísta). Explico melhor: justifica-se a existência humana para que seja feito o conserto (a correção) do que está “errado”, o que credenciará ao homem adquirir o Conhecimento Superior e, desse modo, se aproximar verdadeira e consistentemente do seu Criador. Essa aproximação com Ele é que transforma a pessoa em doadora (altruísta) e não apenas em receptora (egoísta, que é a nossa natureza sem o conhecimento da Cabalá).
Para tanto, caberá a cada um de nós uma parcela de responsabilidade nesse “conserto”. Aos judeus, conforme a Torah, estão definidos 613 mitsvot, sendo 248 preceitos positivos (são obrigações e correspondem ao número de membros do corpo humano) e 365 preceitos negativos (são proibições e correspondem ao número de dias no ano solar). Também em sintonia com a Torah, aos não-judeus estão reservados sete princípios, os quais são denominados de Sete Leis dos Filhos de Noé (Sheva Mitsvot Bnei Noach).
A título de ilustração e com a preocupação de apenas exemplificar as mitsvot mais relacionadas ao tema econômico, que é o item aqui abordado, lanço abaixo três exemplos para cada tipo, ou seja, de obrigação e proibição:
Obrigação:
Pagar no mesmo dia o salário do empregado diarista;
Aplicar as leis relacionadas a quem guarda um objeto mediante pagamento;
Aplicar leis relacionadas a heranças.
Proibição:
Não roubar;
Não desejar propriedades do próximo;
Não deixar de pagar dívidas.
De sua parte, são os seguintes os sete princípios a serem observados pelos não-judeus:
não se rebelar contra Deus;
não praticar idolatria nem servir intermediários entre o homem e Deus;
não cometer assassinatos e tudo o que pode levar a isto;
não cometer adultério, perversões sexuais e tudo o que pode levar a isto; não roubar e tudo o que pode levar a isto, inclusive roubos de idéias e seqüestros;
não comer partes de animais enquanto vivos e tudo o que se estende a isto;
e estabelecer tribunais íntegros, legislar leis honestas e praticar a justiça, o que inclui a caridade.
Com base no exposto, o ensinamento fica subentendido do seguinte modo: caberá aos judeus observar integralmente as mitsvot e aos não-judeus os sete princípios explicitados anteriormente.
Cultural:
Conforme a Cabalá, o primeiro nível de desejo se refere aos elementos físicos, tais como o alimento (a comida, a água etc.), o sexo (a procriação), a família (o grupo) e o lar (o hábitat). Esses são os desejos mais básicos, compartilhados por todas as criaturas vivas. Diferentes do primeiro nível dos desejos, todos os outros níveis são exclusivamente antrópicos e provém de estarmos em uma sociedade humana. O segundo nível é o desejo por riquezas; o terceiro é o desejo por honra, fama e domínio, e o quarto nível é o desejo por conhecimento.
Com base nisso, fica fácil perceber que o desejo (o impulso) do homem por conhecimento é o mais nobre (elevado), pois indica que a pessoa já tem suas necessidades básicas satisfeitas e, assim, se encontra em melhores condições para progredir culturalmente, o que a leva a uma melhor compreensão do mundo em que vive e, por consequência, a crescer espiritualmente. Poderíamos dizer que se trata da fase de amadurecimento da personalidade, ou seja, quando o indivíduo sabe o que quer, mas também o que não quer.
É bom esclarecer que esse conhecimento permeia todo o campo de ação humana, a depender da inclinação da pessoa para uma área de interesse ou outra. Desse modo, um tipo de conhecimento que merece ser destacado é o científico, notadamente quando há possibilidade de ser relacionado com o conhecimento místico (religioso ou outro termo que melhor o defina), tal como procurei aqui fazer, pois podem ter convergências.
Sendo assim, não é por acaso que o ser humano desenvolveu, ao longo do tempo, e por intermédio de várias civilizações, uma série de atividades culturais, dentre elas o cinema, o teatro, a música, a poesia, entre tantas expressões artísticas.
Portanto, o ensinamento a ser extraído desse contexto é o seguinte: valorizarmos, tanto quanto possível, o interesse das pessoas por conhecimentos, assim como apoiar todas as iniciativas voltadas à geração e à difusão de expressões culturais, principalmente para as pessoas com maior dificuldade de acessá-las por conta de limitações financeiras ou de qualquer outra ordem.
Continua no próximo post
Professor Titular ELIAS SILVA*
* Engenheiro Florestal, Mestre e Doutor em Ciência Florestal pela Universidade Federal de Viçosa (UFV)
* Especialista em Pesquisa e Fomento Regional e Empresarial da Atividade Agropecuária pelo Centro de Cooperação Internacional (CINADCO/Shefayim) do Ministério das Relações Exteriores do Estado de Israel (MASHAV)
* Membro do Clube Shalom do Brasil